quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Bolachões e Mãos Francesas

A tarde do último domingo me encontrou em raro momento de solidão em minha casa, um tanto sem saber o que fazer, muito provavelmente pelo inusitado da situação. Diante da súbita disponibilidade de tempo para explorar todo o meu próprio universo (poderia ver fotos, organizar livros ou gavetas, jogar papéis fora) imediatamente decidi usar aquelas horas desenterrando de suas covas rasas os meus velhos vinis, os famosos “bolachões”, para uma sessão individual de miscelânea musical, como sempre que posso faço. Escolhidos alguns álbuns, sentei-me na cadeira diante da janela e me entreguei às canções do passado, que resolvi privilegiar pois que nunca as posso escutar sem que os filhos protestem veementemente, além da própria companheira, cujos gostos musicais nem sempre são, ou estão, alinhados aos meus.

Observava o que vive do outro lado da janela do quarto ocupado pelas minhas crianças com as pernas esticadas até a cama de uma delas, quando ascendeu-se em minha mente uma fraca luzinha sobre o meu próprio quarto adolescente e que tornou-se somente meu após o primeiro casamento de meu único irmão, cravado em um apartamento que se ergueu no meio da metrópole do meu coração, Sampa.

Eu ainda sou o mesmo e as capas quase desfeitas dos meus “bolachões”, algumas até autografadas, como a do Fred Bongusto que dedicou o disco ao “Iva”, provam isso. Muda a vida do outro lado da janela, de outras janelas de edifícios vizinhos para árvores e pássaros, mas eu não mudo. Surgem linhas no rosto que observa a moça da capa do Fortíssimo herdado de algum primo mais velho (loira de calças justas até as canelas, blusa colorida e chinelo), mas não muda o olhar que ainda quereria estar na edição do ano do festival de San Remo. Mudam porque envelhecem as gôndolas venezianas da foto que guarda a Canzone Per Te mas não mudam as expectativas aleatórias de que encontros desconhecidos e não planejados naquela mesma noite mudarão a vida.

Depois que meu irmão se casou tive de meu pai a permissão para adaptar a meu gosto e necessidades o quarto para onde hoje retorno em sonho e assim o fiz para instalar prateleiras pelas paredes, todas de madeira clara fixas com mãos francesas pretas, e comprar uma escrivaninha daquelas altas cheia de gavetinhas que guardaram missais e terços da primeira comunhão, vidrinhos vazios de perfume, fotos e revistas, em gavetas cuidadosamente separadas, assim como na escrivaninha de minha alma jovem, além de outras tantas aparentes inutilidades e lembranças.

Nas prateleiras fixas com mãos francesas depositei meus livros, papéis importantes, cadernos e apostilas da escola, dezenas de músicas cifradas que lá permaneceram por longo tempo sem serem aprendidas e toda a minha intenção de criar um mundo só meu e que jamais se completou pois algumas prateleiras ainda permanecem vazias a espera das confissões escritas que não tive coragem nem forças para tornar feitas, de uma vez por todas.

Gavetas e prateleiras do meu quarto de adolescente dividiram o que fui e sou, assim como os dias ainda hoje o fazem, mas vozes que ouço na vitrola repletas de ruídos do tempo já me vêm lembrar do necessário resgate e unificação de todos aqueles que em min se tornam um inteiro. Do que fui, fragmentado, para o que sou, quase colados os pedaços, aprendi a abrir bem os olhos em direção desses compartimentos que me guardam em partes e não sinto mais dor, mas apenas ternura por aquele que ainda encontro um tanto apartado de si mesmo.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Da justiça e sua morada

Certo dia em minha casa em Ribeirão Preto, lá pelos idos de 2000, mais ou menos, uma amiga violoncelista me perguntou, depois de uma consulta jurídica formulada em uma manhã de domingo sobre problemas que enfrentava à época com sua doméstica, afinal, onde está a justiça? Convivo com essa questão em minhas entranhas há exatos 25 anos, quando jurei solenemente buscá-la a despeito de tudo, inclusive da lei e dos homens que julgam, e faço muitíssimo menos do que gostaria, pois que essa atitude livre e consciente seria o alimento para manter saudável minha conturbada relação com minha profissão, e por isso já tão debilitada.
Especificamente hoje a mesma questão me assola: Onde está a Justiça?, lembrando-me que a indignação de quem me perguntava naquele momento era originária do fato de que a então patroa havia pontuado sua relação com a empregada pela disposição em responder às necessidades desta, ainda que a despeito da lei, uma vez que direitos não julgados necessários não eram observados, ou seja, minha interlocutora queria saber afinal onde encontramos a justiça, se havia feito tudo o que ambas julgavam seria o necessário para que a relação de trabalho fosse equilibrada, equânime.
Naquela manhã de domingo, mesmo que sem saber tudo o que essa resposta poderia conter (e passados 9 anos ainda estou descobrindo), respondi a ela que a justiça só poderia ser encontrada dentro de cada um de nós e que, por isso, justiça e lei precisam ser encarados como ambitos diferentes, e esta cabe dentro daquela, mas a recíproca não é necessariamente verdadeira. Assim, declarar a verdade somente baseado em um conjunto de ferramentas voltadas à tentativa de organização social , seja a própria letra da lei, seja o dizer sobre ela, não garante que o fenônemo da justiça ocorra enquanto qualidade inerente ao homem, e tão somente a este, em seu ambito interno, uma vez que, mesmo diante da consciência de que não é justo em razão do que quer que seja, caso a lei o proteja, é somente do homem a decisão de executar, ou não, seus direitos, em detrimento da justiça, em alguns casos. E cada um de nós tem a medida exata da justiça de seus próprios atos, sem que ninguém precise ensinar.
Guardadas as devidas diferenças e proporções, acordei com essa mesma pergunta, diante de uma sanção disciplinar aplicada ao meu filho pela escola onde estuda, diante do fato de ele ser, reconhecidamente por todos e admtido pelo próprio, a origem e a liderança de um processo desestabilizador da dinâmica de aulas que participa, em outras palavras, a velha situação já vivida por muitos pais: o seu filho puxa a corrente e os demais vão atrás. Na tentativa de usar os procedimentos disciplinares disponíveis, somente essa liderança foi punida pela instituição, sem que houvesse uma avaliação profunda, até onde eu sei, do contexto geral que envolveu a ilicitude do ato (bagunça) e sem a reflexão sobre se aquela única deliberação punitiva seria suficiente para que a justiça fosse feita.
Pois bem, também não tenho a resposta, mas sinto transitando pelas regiões da minha cabeça, peito e estômago, e principalmente deste último, uma leve dúvida sobre se a decisão foi realmente justa, ou se eu tenho a totalidade das informações sobre o assunto, ou seja, se a sanção aplicada de fato devolve ao mundo a segurança de que foi dado a César o que é de César, imagem que tão bem ilustra o que é a justiça, essa abstração tão procurada pelo homem desde que encontrou outro homem, ou seja, sempre, de forma que a cada qual seja atribuída a obrigação de responder pelo o que quer que tenha dado causa.
Se um puxa e outros seguem há uma plularidade de ações que envolvem o resultado ocorrido, ainda que de naturezas e intensidades diferentes. Se o resultado, por sua vez, foi danoso, há que avaliar a conduta de cada um dos que participaram, quem puxou e quem foi atrás e, me parece, não há outra alternativa senão haver, da mesma maneira, uma pluralidade de sanções, diversas entre si, é claro, mesmo que a letra da lei, nesse caso os regulamentos escolares, em quaisquer de suas formas, assim não preveja. Se essa não for a deliberação do julgamento certamente a justiça perdeu-se pelo caminho e só há uma pessoa, ou pessoas, legítimamente aptas a encontrá-la: aquelas que não foram punidas pois que as falhas da lei, ou dos homens que as julgaram, as protegeram. Elas guardam a morada da justiça e preferencialmente podem libertá-la, arrancando-a do mesmo lugar onde eu disse ela estaria à minha amiga: no interior de cada uma delas.
De fato tenho dúvidas se minha análise pode ser considerada realmente isenta, mas tenho por princípio que assim seja e sou treinado para isso. Na nossa caminhada diária damo-nos pouco conta de o quanto as nossas pequenas escolhas podem ser reconhecidas como o ressoar humano desses seres arquetípicos intangíveis como a moral, a ética, a justiça e, no mais das vezes, tenho a impressão de que usamos pouco dos nossos recursos diversos, pensamentais inclusive, mas especialmente o do entregar-se para que venham a nós as inspirações e intuições que trarão a luz desses seres que se abrigam em nós mesmos. O resto é coragem.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

De todas as dores-de-cotovelo

..Tu me mandaste embora eu irei, mas comigo também levarei o orgulho de não mais voltar.. Desde ontem venho cantarolando esse samba-canção que deve ter sido gravado antes mesmo de eu nascer, como se alguém me tivesse mandado embora e eu prometesse, para castigar a ingrata que ..este trapo, tu não mais verás... A música faz isso comigo: vivo todas as vidas que quero viver, me transformo e invento de olhos fechados situações coloridas repletas de dores-de-cotovelo “bolerísticas” e “sambacancionísticas” também.

É fato que, dentre outros, também gosto de “música de cabaret”, embora essa classificação de gênero musical possa ser mal interpretada, mas é provocativa e gosto dela por isso, expressão que homenageia um grande amigo que anotava – cabaret - nos canhotos dos talões de cheques as noturnas despesas tidas com líquidos etílicos, propositalmente, caso sua mulher resolvesse bisbilhotar e que eu considero por isso mestre em mentir, contando a verdade, já que é tão absurdo o sujeito ir a uma boite, admitir e deixar os rastros para a própria patroa que só pode ser mentira.

Como filho de meu pai que sou, desde que nasci, e tendo sido ele um crooner de orquestra, quando moço, fotógrafo de artistas e freqüentador da boemia paulistana, como não poderia deixar de ser, esse era o universo musical da minha infância. Além disso minha mãe e tias cantavam nos coros da matriz de São José do Belém (de São Paulo, capital, e não do Pará) e nas festinhas da colônia italiana onde se podia ouvir, além dos sucessos da era do rádio, conta ainda hoje minha tia Odete, a Adelaide Chiozzo tocar sua divertida sanfona.

Por isso, ainda no jardim da infância – ai se a Tia Marini soubesse (se fala Mariní com acento agudo no último i)- conheci o cais de Barcelona e sua beira, de tanto assistir a pobre Dolores Sierra vinda da roça esperar um tal Dom Pedrito, filho-da-mãe, que prometeu buscá-la e não cumpriu. Lá mesmo a Lola ficou o resto da vida, sorrindo para quem ganhasse em algum jogo imaginário a primeira peseta da noite. Ficava eu pensando se na Espanha não havia ônibus que ela pudesse tomar com as pesetas que ganhava dos caras do porto e voltar para casa (na época eu não sabia como a Dolores fazia para ganhar a grana dos marinheiros já que sorrir nunca havia, até onde sabia, dado um cruzeiro a ninguém).

Daquele tempo me vem a saudade da boneca de trapo, desde sempre perdida no mundo a rolar (era, digamos, uma gorda com sex appeal), chamada de farrapo de gente, que pecava por prazer e foi meu primeiro vício, antes mesmo do cigarro (desculpe o palavrão), o único aliás, pois foi com ela que eu também amanheci na rua, first time, aos 8 ou 9 anos, talvez antes, ela que gostava da lua, era fã das estrelas e vadia (dito pelo próprio dono da voz que despertou admiração do Frank Sinatra, o “Nelsão”, como dizia meu pai, seu grande admirador). A minha boneca era .. da cor do azeviche, da jaboticaba.., ou seja, preta, como aquelas que o Grande Otelo usava como partner de dança quando declarava que era preto e avisava que ninguém contestasse seu gosto pois havia muito branco com pinta na testa.

Eu olhava a boneca de piche, que não era de piche mas de pano mesmo, e me lembrava da de trapo, e simpatizava por demais com as duas: a primeira era meu amor divertido e dançava comigo molinha, molinha. A segunda me fazia parecer uma personagem desconhecida da minha infância, o filho de uma família italiana prometido a uma de minhas tias, com quem namorava desde criança, e que se apaixonou por uma taxi girl e com ela teve um filho. Do final da estória eu não sei muito bem, além de que o casamento não aconteceu um tanto pela fúria de meu avô, pois era assunto escondido, tratado como segredo a ser esquecido e não comentado.

Não tinha 12 anos e já era íntimo da desilusão amorosa e deve ser essa a razão de não haver uma só festa de São João em que não me lembre do amor que em uma delas teve seu começo e depois se acabou, morrendo sem foguete, sem retrato e sem bilhete, como dito em Último Desejo, música que alguns anos depois ainda se tornou mais especial pois era a preferida dos pais de um meu amigo e vizinho e que foram realmente donos da minha estima.

Quando eu canto ..ninguém é de ninguém, na vida tudo passa.. todo mundo ri e eu mesmo acho engraçado, excessivamente melodramático ao declarar que o ..mundo é mesmo assim... Mas continuo gostando e cantando essas canções que ouvia na vitrola portátil verde e branca aos domingos pela manhã, na sala de tacos de madeira cuidadosamente encerados de nossa casa da Vila Teixeira, carregando no sentimento de dor pelo abandono, pelo destino cruel de amar sem ser amado, exagerando na vibração das cordas vocais ao perguntar que queres tu de mim?

Os ventos musicais que sopraram no Brazil depois dos anos 40 do último século, embora adoráveis, tornaram cafona a cantoria sentimental de gente como Altemar Dutra, Dolores Duran, Nora Ney, Agostinho dos Santos, só para citar alguns nomes, e decretaram que bacana mesmo são manhãs na praia de Copacabana, que deviam ser mesmo belíssimas naquele tempo, barquinhos que vão e tardinhas que caem, muitíssimo bem sacado e que eu adoro, e não mais a boemia noturna que levou Dalva de Oliveira ao erro admitido escrito por Ataulfo Alves e à vingança que o Lupcínio Rodrigues entregou à Linda Batista cantar e ninguém mais deu conta de fazer melhor.

De minha parte, que posso tudo e gosto de música brasileira, velha, nova, velhíssima ou novíssima, me vingo dentro do barquinho navegando nas águas de Copacabana no final de uma tarde, nas companhias de Dolores espanhola e da boneca de trapo, cantando alto ou pianinho, do jeito que me der na telha.