terça-feira, 1 de setembro de 2009

De todas as dores-de-cotovelo

..Tu me mandaste embora eu irei, mas comigo também levarei o orgulho de não mais voltar.. Desde ontem venho cantarolando esse samba-canção que deve ter sido gravado antes mesmo de eu nascer, como se alguém me tivesse mandado embora e eu prometesse, para castigar a ingrata que ..este trapo, tu não mais verás... A música faz isso comigo: vivo todas as vidas que quero viver, me transformo e invento de olhos fechados situações coloridas repletas de dores-de-cotovelo “bolerísticas” e “sambacancionísticas” também.

É fato que, dentre outros, também gosto de “música de cabaret”, embora essa classificação de gênero musical possa ser mal interpretada, mas é provocativa e gosto dela por isso, expressão que homenageia um grande amigo que anotava – cabaret - nos canhotos dos talões de cheques as noturnas despesas tidas com líquidos etílicos, propositalmente, caso sua mulher resolvesse bisbilhotar e que eu considero por isso mestre em mentir, contando a verdade, já que é tão absurdo o sujeito ir a uma boite, admitir e deixar os rastros para a própria patroa que só pode ser mentira.

Como filho de meu pai que sou, desde que nasci, e tendo sido ele um crooner de orquestra, quando moço, fotógrafo de artistas e freqüentador da boemia paulistana, como não poderia deixar de ser, esse era o universo musical da minha infância. Além disso minha mãe e tias cantavam nos coros da matriz de São José do Belém (de São Paulo, capital, e não do Pará) e nas festinhas da colônia italiana onde se podia ouvir, além dos sucessos da era do rádio, conta ainda hoje minha tia Odete, a Adelaide Chiozzo tocar sua divertida sanfona.

Por isso, ainda no jardim da infância – ai se a Tia Marini soubesse (se fala Mariní com acento agudo no último i)- conheci o cais de Barcelona e sua beira, de tanto assistir a pobre Dolores Sierra vinda da roça esperar um tal Dom Pedrito, filho-da-mãe, que prometeu buscá-la e não cumpriu. Lá mesmo a Lola ficou o resto da vida, sorrindo para quem ganhasse em algum jogo imaginário a primeira peseta da noite. Ficava eu pensando se na Espanha não havia ônibus que ela pudesse tomar com as pesetas que ganhava dos caras do porto e voltar para casa (na época eu não sabia como a Dolores fazia para ganhar a grana dos marinheiros já que sorrir nunca havia, até onde sabia, dado um cruzeiro a ninguém).

Daquele tempo me vem a saudade da boneca de trapo, desde sempre perdida no mundo a rolar (era, digamos, uma gorda com sex appeal), chamada de farrapo de gente, que pecava por prazer e foi meu primeiro vício, antes mesmo do cigarro (desculpe o palavrão), o único aliás, pois foi com ela que eu também amanheci na rua, first time, aos 8 ou 9 anos, talvez antes, ela que gostava da lua, era fã das estrelas e vadia (dito pelo próprio dono da voz que despertou admiração do Frank Sinatra, o “Nelsão”, como dizia meu pai, seu grande admirador). A minha boneca era .. da cor do azeviche, da jaboticaba.., ou seja, preta, como aquelas que o Grande Otelo usava como partner de dança quando declarava que era preto e avisava que ninguém contestasse seu gosto pois havia muito branco com pinta na testa.

Eu olhava a boneca de piche, que não era de piche mas de pano mesmo, e me lembrava da de trapo, e simpatizava por demais com as duas: a primeira era meu amor divertido e dançava comigo molinha, molinha. A segunda me fazia parecer uma personagem desconhecida da minha infância, o filho de uma família italiana prometido a uma de minhas tias, com quem namorava desde criança, e que se apaixonou por uma taxi girl e com ela teve um filho. Do final da estória eu não sei muito bem, além de que o casamento não aconteceu um tanto pela fúria de meu avô, pois era assunto escondido, tratado como segredo a ser esquecido e não comentado.

Não tinha 12 anos e já era íntimo da desilusão amorosa e deve ser essa a razão de não haver uma só festa de São João em que não me lembre do amor que em uma delas teve seu começo e depois se acabou, morrendo sem foguete, sem retrato e sem bilhete, como dito em Último Desejo, música que alguns anos depois ainda se tornou mais especial pois era a preferida dos pais de um meu amigo e vizinho e que foram realmente donos da minha estima.

Quando eu canto ..ninguém é de ninguém, na vida tudo passa.. todo mundo ri e eu mesmo acho engraçado, excessivamente melodramático ao declarar que o ..mundo é mesmo assim... Mas continuo gostando e cantando essas canções que ouvia na vitrola portátil verde e branca aos domingos pela manhã, na sala de tacos de madeira cuidadosamente encerados de nossa casa da Vila Teixeira, carregando no sentimento de dor pelo abandono, pelo destino cruel de amar sem ser amado, exagerando na vibração das cordas vocais ao perguntar que queres tu de mim?

Os ventos musicais que sopraram no Brazil depois dos anos 40 do último século, embora adoráveis, tornaram cafona a cantoria sentimental de gente como Altemar Dutra, Dolores Duran, Nora Ney, Agostinho dos Santos, só para citar alguns nomes, e decretaram que bacana mesmo são manhãs na praia de Copacabana, que deviam ser mesmo belíssimas naquele tempo, barquinhos que vão e tardinhas que caem, muitíssimo bem sacado e que eu adoro, e não mais a boemia noturna que levou Dalva de Oliveira ao erro admitido escrito por Ataulfo Alves e à vingança que o Lupcínio Rodrigues entregou à Linda Batista cantar e ninguém mais deu conta de fazer melhor.

De minha parte, que posso tudo e gosto de música brasileira, velha, nova, velhíssima ou novíssima, me vingo dentro do barquinho navegando nas águas de Copacabana no final de uma tarde, nas companhias de Dolores espanhola e da boneca de trapo, cantando alto ou pianinho, do jeito que me der na telha.

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