terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Pulando Corda

Tudo o que temos à frente é o vazio,
cada um de nós.
E como nenhuma certeza nos alimenta,
somos apenas seres que podem,
mas não são.

Nada nos preenche ao nascer.
Nada nos assegura, nada.

Nos apossamos do que não é nosso genuinamente,
a cada manhã e a cada noite,
na ilusão de saber, ter, conhecer, julgar, proteger;
na tentativa de agradar, simular, trair e conceber.

Só nos enchemos a nós mesmos
de ar a cada instante,
por que oco é o escuro de nossas almas.

Só podemos contar com o suor salgado que brota de nossas escolhas,
única coisa que vamos recolhendo
ao longo da vida,
de forma a ocupar esse espaço que vive à espera.

Diante daquilo que posso,
arrisco,
me jogo,
lanço a mim mesmo nesse mar de possibilidades.

Como um menino que,
de braços erguidos,
de olho na corda que é batida em círculos,
entrega o corpo ao ritmo enquanto aguarda,
supõe o momento e espaço certos, e
ao final vai.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Bolachões e Mãos Francesas

A tarde do último domingo me encontrou em raro momento de solidão em minha casa, um tanto sem saber o que fazer, muito provavelmente pelo inusitado da situação. Diante da súbita disponibilidade de tempo para explorar todo o meu próprio universo (poderia ver fotos, organizar livros ou gavetas, jogar papéis fora) imediatamente decidi usar aquelas horas desenterrando de suas covas rasas os meus velhos vinis, os famosos “bolachões”, para uma sessão individual de miscelânea musical, como sempre que posso faço. Escolhidos alguns álbuns, sentei-me na cadeira diante da janela e me entreguei às canções do passado, que resolvi privilegiar pois que nunca as posso escutar sem que os filhos protestem veementemente, além da própria companheira, cujos gostos musicais nem sempre são, ou estão, alinhados aos meus.

Observava o que vive do outro lado da janela do quarto ocupado pelas minhas crianças com as pernas esticadas até a cama de uma delas, quando ascendeu-se em minha mente uma fraca luzinha sobre o meu próprio quarto adolescente e que tornou-se somente meu após o primeiro casamento de meu único irmão, cravado em um apartamento que se ergueu no meio da metrópole do meu coração, Sampa.

Eu ainda sou o mesmo e as capas quase desfeitas dos meus “bolachões”, algumas até autografadas, como a do Fred Bongusto que dedicou o disco ao “Iva”, provam isso. Muda a vida do outro lado da janela, de outras janelas de edifícios vizinhos para árvores e pássaros, mas eu não mudo. Surgem linhas no rosto que observa a moça da capa do Fortíssimo herdado de algum primo mais velho (loira de calças justas até as canelas, blusa colorida e chinelo), mas não muda o olhar que ainda quereria estar na edição do ano do festival de San Remo. Mudam porque envelhecem as gôndolas venezianas da foto que guarda a Canzone Per Te mas não mudam as expectativas aleatórias de que encontros desconhecidos e não planejados naquela mesma noite mudarão a vida.

Depois que meu irmão se casou tive de meu pai a permissão para adaptar a meu gosto e necessidades o quarto para onde hoje retorno em sonho e assim o fiz para instalar prateleiras pelas paredes, todas de madeira clara fixas com mãos francesas pretas, e comprar uma escrivaninha daquelas altas cheia de gavetinhas que guardaram missais e terços da primeira comunhão, vidrinhos vazios de perfume, fotos e revistas, em gavetas cuidadosamente separadas, assim como na escrivaninha de minha alma jovem, além de outras tantas aparentes inutilidades e lembranças.

Nas prateleiras fixas com mãos francesas depositei meus livros, papéis importantes, cadernos e apostilas da escola, dezenas de músicas cifradas que lá permaneceram por longo tempo sem serem aprendidas e toda a minha intenção de criar um mundo só meu e que jamais se completou pois algumas prateleiras ainda permanecem vazias a espera das confissões escritas que não tive coragem nem forças para tornar feitas, de uma vez por todas.

Gavetas e prateleiras do meu quarto de adolescente dividiram o que fui e sou, assim como os dias ainda hoje o fazem, mas vozes que ouço na vitrola repletas de ruídos do tempo já me vêm lembrar do necessário resgate e unificação de todos aqueles que em min se tornam um inteiro. Do que fui, fragmentado, para o que sou, quase colados os pedaços, aprendi a abrir bem os olhos em direção desses compartimentos que me guardam em partes e não sinto mais dor, mas apenas ternura por aquele que ainda encontro um tanto apartado de si mesmo.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Da justiça e sua morada

Certo dia em minha casa em Ribeirão Preto, lá pelos idos de 2000, mais ou menos, uma amiga violoncelista me perguntou, depois de uma consulta jurídica formulada em uma manhã de domingo sobre problemas que enfrentava à época com sua doméstica, afinal, onde está a justiça? Convivo com essa questão em minhas entranhas há exatos 25 anos, quando jurei solenemente buscá-la a despeito de tudo, inclusive da lei e dos homens que julgam, e faço muitíssimo menos do que gostaria, pois que essa atitude livre e consciente seria o alimento para manter saudável minha conturbada relação com minha profissão, e por isso já tão debilitada.
Especificamente hoje a mesma questão me assola: Onde está a Justiça?, lembrando-me que a indignação de quem me perguntava naquele momento era originária do fato de que a então patroa havia pontuado sua relação com a empregada pela disposição em responder às necessidades desta, ainda que a despeito da lei, uma vez que direitos não julgados necessários não eram observados, ou seja, minha interlocutora queria saber afinal onde encontramos a justiça, se havia feito tudo o que ambas julgavam seria o necessário para que a relação de trabalho fosse equilibrada, equânime.
Naquela manhã de domingo, mesmo que sem saber tudo o que essa resposta poderia conter (e passados 9 anos ainda estou descobrindo), respondi a ela que a justiça só poderia ser encontrada dentro de cada um de nós e que, por isso, justiça e lei precisam ser encarados como ambitos diferentes, e esta cabe dentro daquela, mas a recíproca não é necessariamente verdadeira. Assim, declarar a verdade somente baseado em um conjunto de ferramentas voltadas à tentativa de organização social , seja a própria letra da lei, seja o dizer sobre ela, não garante que o fenônemo da justiça ocorra enquanto qualidade inerente ao homem, e tão somente a este, em seu ambito interno, uma vez que, mesmo diante da consciência de que não é justo em razão do que quer que seja, caso a lei o proteja, é somente do homem a decisão de executar, ou não, seus direitos, em detrimento da justiça, em alguns casos. E cada um de nós tem a medida exata da justiça de seus próprios atos, sem que ninguém precise ensinar.
Guardadas as devidas diferenças e proporções, acordei com essa mesma pergunta, diante de uma sanção disciplinar aplicada ao meu filho pela escola onde estuda, diante do fato de ele ser, reconhecidamente por todos e admtido pelo próprio, a origem e a liderança de um processo desestabilizador da dinâmica de aulas que participa, em outras palavras, a velha situação já vivida por muitos pais: o seu filho puxa a corrente e os demais vão atrás. Na tentativa de usar os procedimentos disciplinares disponíveis, somente essa liderança foi punida pela instituição, sem que houvesse uma avaliação profunda, até onde eu sei, do contexto geral que envolveu a ilicitude do ato (bagunça) e sem a reflexão sobre se aquela única deliberação punitiva seria suficiente para que a justiça fosse feita.
Pois bem, também não tenho a resposta, mas sinto transitando pelas regiões da minha cabeça, peito e estômago, e principalmente deste último, uma leve dúvida sobre se a decisão foi realmente justa, ou se eu tenho a totalidade das informações sobre o assunto, ou seja, se a sanção aplicada de fato devolve ao mundo a segurança de que foi dado a César o que é de César, imagem que tão bem ilustra o que é a justiça, essa abstração tão procurada pelo homem desde que encontrou outro homem, ou seja, sempre, de forma que a cada qual seja atribuída a obrigação de responder pelo o que quer que tenha dado causa.
Se um puxa e outros seguem há uma plularidade de ações que envolvem o resultado ocorrido, ainda que de naturezas e intensidades diferentes. Se o resultado, por sua vez, foi danoso, há que avaliar a conduta de cada um dos que participaram, quem puxou e quem foi atrás e, me parece, não há outra alternativa senão haver, da mesma maneira, uma pluralidade de sanções, diversas entre si, é claro, mesmo que a letra da lei, nesse caso os regulamentos escolares, em quaisquer de suas formas, assim não preveja. Se essa não for a deliberação do julgamento certamente a justiça perdeu-se pelo caminho e só há uma pessoa, ou pessoas, legítimamente aptas a encontrá-la: aquelas que não foram punidas pois que as falhas da lei, ou dos homens que as julgaram, as protegeram. Elas guardam a morada da justiça e preferencialmente podem libertá-la, arrancando-a do mesmo lugar onde eu disse ela estaria à minha amiga: no interior de cada uma delas.
De fato tenho dúvidas se minha análise pode ser considerada realmente isenta, mas tenho por princípio que assim seja e sou treinado para isso. Na nossa caminhada diária damo-nos pouco conta de o quanto as nossas pequenas escolhas podem ser reconhecidas como o ressoar humano desses seres arquetípicos intangíveis como a moral, a ética, a justiça e, no mais das vezes, tenho a impressão de que usamos pouco dos nossos recursos diversos, pensamentais inclusive, mas especialmente o do entregar-se para que venham a nós as inspirações e intuições que trarão a luz desses seres que se abrigam em nós mesmos. O resto é coragem.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

De todas as dores-de-cotovelo

..Tu me mandaste embora eu irei, mas comigo também levarei o orgulho de não mais voltar.. Desde ontem venho cantarolando esse samba-canção que deve ter sido gravado antes mesmo de eu nascer, como se alguém me tivesse mandado embora e eu prometesse, para castigar a ingrata que ..este trapo, tu não mais verás... A música faz isso comigo: vivo todas as vidas que quero viver, me transformo e invento de olhos fechados situações coloridas repletas de dores-de-cotovelo “bolerísticas” e “sambacancionísticas” também.

É fato que, dentre outros, também gosto de “música de cabaret”, embora essa classificação de gênero musical possa ser mal interpretada, mas é provocativa e gosto dela por isso, expressão que homenageia um grande amigo que anotava – cabaret - nos canhotos dos talões de cheques as noturnas despesas tidas com líquidos etílicos, propositalmente, caso sua mulher resolvesse bisbilhotar e que eu considero por isso mestre em mentir, contando a verdade, já que é tão absurdo o sujeito ir a uma boite, admitir e deixar os rastros para a própria patroa que só pode ser mentira.

Como filho de meu pai que sou, desde que nasci, e tendo sido ele um crooner de orquestra, quando moço, fotógrafo de artistas e freqüentador da boemia paulistana, como não poderia deixar de ser, esse era o universo musical da minha infância. Além disso minha mãe e tias cantavam nos coros da matriz de São José do Belém (de São Paulo, capital, e não do Pará) e nas festinhas da colônia italiana onde se podia ouvir, além dos sucessos da era do rádio, conta ainda hoje minha tia Odete, a Adelaide Chiozzo tocar sua divertida sanfona.

Por isso, ainda no jardim da infância – ai se a Tia Marini soubesse (se fala Mariní com acento agudo no último i)- conheci o cais de Barcelona e sua beira, de tanto assistir a pobre Dolores Sierra vinda da roça esperar um tal Dom Pedrito, filho-da-mãe, que prometeu buscá-la e não cumpriu. Lá mesmo a Lola ficou o resto da vida, sorrindo para quem ganhasse em algum jogo imaginário a primeira peseta da noite. Ficava eu pensando se na Espanha não havia ônibus que ela pudesse tomar com as pesetas que ganhava dos caras do porto e voltar para casa (na época eu não sabia como a Dolores fazia para ganhar a grana dos marinheiros já que sorrir nunca havia, até onde sabia, dado um cruzeiro a ninguém).

Daquele tempo me vem a saudade da boneca de trapo, desde sempre perdida no mundo a rolar (era, digamos, uma gorda com sex appeal), chamada de farrapo de gente, que pecava por prazer e foi meu primeiro vício, antes mesmo do cigarro (desculpe o palavrão), o único aliás, pois foi com ela que eu também amanheci na rua, first time, aos 8 ou 9 anos, talvez antes, ela que gostava da lua, era fã das estrelas e vadia (dito pelo próprio dono da voz que despertou admiração do Frank Sinatra, o “Nelsão”, como dizia meu pai, seu grande admirador). A minha boneca era .. da cor do azeviche, da jaboticaba.., ou seja, preta, como aquelas que o Grande Otelo usava como partner de dança quando declarava que era preto e avisava que ninguém contestasse seu gosto pois havia muito branco com pinta na testa.

Eu olhava a boneca de piche, que não era de piche mas de pano mesmo, e me lembrava da de trapo, e simpatizava por demais com as duas: a primeira era meu amor divertido e dançava comigo molinha, molinha. A segunda me fazia parecer uma personagem desconhecida da minha infância, o filho de uma família italiana prometido a uma de minhas tias, com quem namorava desde criança, e que se apaixonou por uma taxi girl e com ela teve um filho. Do final da estória eu não sei muito bem, além de que o casamento não aconteceu um tanto pela fúria de meu avô, pois era assunto escondido, tratado como segredo a ser esquecido e não comentado.

Não tinha 12 anos e já era íntimo da desilusão amorosa e deve ser essa a razão de não haver uma só festa de São João em que não me lembre do amor que em uma delas teve seu começo e depois se acabou, morrendo sem foguete, sem retrato e sem bilhete, como dito em Último Desejo, música que alguns anos depois ainda se tornou mais especial pois era a preferida dos pais de um meu amigo e vizinho e que foram realmente donos da minha estima.

Quando eu canto ..ninguém é de ninguém, na vida tudo passa.. todo mundo ri e eu mesmo acho engraçado, excessivamente melodramático ao declarar que o ..mundo é mesmo assim... Mas continuo gostando e cantando essas canções que ouvia na vitrola portátil verde e branca aos domingos pela manhã, na sala de tacos de madeira cuidadosamente encerados de nossa casa da Vila Teixeira, carregando no sentimento de dor pelo abandono, pelo destino cruel de amar sem ser amado, exagerando na vibração das cordas vocais ao perguntar que queres tu de mim?

Os ventos musicais que sopraram no Brazil depois dos anos 40 do último século, embora adoráveis, tornaram cafona a cantoria sentimental de gente como Altemar Dutra, Dolores Duran, Nora Ney, Agostinho dos Santos, só para citar alguns nomes, e decretaram que bacana mesmo são manhãs na praia de Copacabana, que deviam ser mesmo belíssimas naquele tempo, barquinhos que vão e tardinhas que caem, muitíssimo bem sacado e que eu adoro, e não mais a boemia noturna que levou Dalva de Oliveira ao erro admitido escrito por Ataulfo Alves e à vingança que o Lupcínio Rodrigues entregou à Linda Batista cantar e ninguém mais deu conta de fazer melhor.

De minha parte, que posso tudo e gosto de música brasileira, velha, nova, velhíssima ou novíssima, me vingo dentro do barquinho navegando nas águas de Copacabana no final de uma tarde, nas companhias de Dolores espanhola e da boneca de trapo, cantando alto ou pianinho, do jeito que me der na telha.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Dos títulos das Coisas

Para mim é bastante difícil imaginar títulos para crônicas, assim como também para qualquer escrito, da mesma forma que, mesmo talvez mal comparando, é bastante delicado sintetizar acontecimentos em apenas uma frase, pois esses podem nos atropelar e deixar-nos mancos sabe-se lá quanto tempo, levar a termo situações com apenas uma expressão, considerando-se que dependendo das circunstâncias podemos entrar nelas uns e sair outros, reduzir um sentimento a uma palavra, já que sentimentos podem nos levar ao céu ou ao inferno, em alguns segundos. Títulos são coisas importantes para quem aparou a coisa titulada. Têm a tarefa de representar, de dizer algo fundamental, direta ou indiretamente, e imaginá-los é um risco pois é preciso ficar nu quase em pêlo, deixar-se vestido somente com o essencial.

Nessa hora de escolher títulos, por tudo o que disse, dá-me uma ansiedade de encontrar a melhor solução e surge internamente uma inquietação por enxergar na minha frente tantas possibilidades, tantas maneiras de dizer uma mesma coisa, tantos pontos periféricos em torno de um às vezes único núcleo.

Ao imaginar um assunto para esta fala, e nesse ponto do processo há alguma similaridade com o momento da titulação, pois ambas reduzem, concentram, na medida em que é preciso tornar objetiva uma idéia que sirva de “ponto de partida” para o pensamento, mas que ao mesmo tempo seja inteira, o qual, ao depois, se desenvolve com sua própria vida, imediatamente lembrei-me do título deste blog que, a bem da verdade, é uma oração completa (sujeito, verbo e predicado) com a qual convivo de há muito, muito mesmo.

Encontrar títulos ou conceber uma idéia inicial talvez seja como viver: abandonar as poucas importâncias e dedicar-se àquilo que realmente traz sentido à vida é por muitas vezes incumbência que passamos décadas para realizar, e muitos de nós não realizamos, empenhando forças para não enroscar nas dúvidas e incertezas de nós mesmos, ou para desenroscarmo-nos delas, então fracos para estabelecer as vitais vinculações entre as possibilidades, o que estas representam para nós e os recursos e potenciais que trazemos internamente.

“Eu queria dizer o que eu penso sobre o mundo” foi a resposta que eu mesmo dei a uma pergunta feita por um grande amigo que não vejo a algum tempo, e repetidas em algumas manhãs de segundas-feiras ribeirãopretanas quando nos encontrávamos para estudar um pouco e falar de nós mesmos, buscando apoio mútuo para as necessárias transformações pessoais que estavam por vir, entre um violãozinho aqui, um cafezinho ali e dois cigarrinhos certos, ao ser inquirido sobre a questão que realmente vivia em mim nos idos da juventude.

Transformando a afirmação inicial em pergunta, que mesmo após tantos anos ainda caminha junto de mim, escondida ao meu lado na maior parte do tempo, esperando calada compartilhar minhas escolhas e experiências, tentando sem sucesso, admito, passar à minha frente para abrir caminhos, postando-se atrás de mim esperando respaldar o que precisa ser, chego ao título deste blog: O que eu penso sobre o mundo, como eu o vejo, de que forma posso apresentá-lo com meu olhar?

Embora não tenha sido difícil responder à pergunta naquela segunda-feira, e essa clareza de visão me assusta, pois não tem sido fértil, nunca consegui saber o que fazer com ela, como se não tivesse força suficiente para alavancar minha vontade, e de fato não teve. Despido de filtros ou limitantes considerações prévias, respondi calma e objetivamente à pergunta do meu amigo fumante como eu (não sei se ainda o é) e mais alguns tantos anos se passaram, sem que eu a tivesse feito concreta.

De que servem estas crônicas nas quais eu falo mais sobre mim mesmo do que sobre o mundo, afinal, se é ele o objeto do meu encanto, ou não seria desde o início e tudo não passou de um ledo engano?

Preciso supor, para não me reconhecer à deriva mais uma vez, torcendo para que seja um relance de intuição, que ao falar de mim, não é apenas de mim mesmo que falo, mas do ser único que somos e fomos, desde o princípio, pois o faço carregado pelos braços da fraternidade, disposto a dividir o que é somente meu no princípio, mas que depois de dito deixa de me pertencer e torna-se, enfim, comunitário, embalado pela suavidade da esperança de apenas repetir o que não nasce necessariamente em mim, mas também, e em cada um de nós, e em todos, de formas, jeitos e clareza diferentes, e talvez eu apenas tenha uma voz para dizer, ávido para que eu possa funcionar como algum eco daquilo que nasce fora e eu empresto o que tenho, e o que não tenho, em mim para que viva, em nome do outro, por nossa conta. Tenho receio de ser presunção, mas é assim que sinto e faço. Falo desse corpo irmanado composto por cada um de nós, e por todos nós.

Então, o mundo sobre o qual eu queria (e quero) falar é o “nós”; sou eu e é o outro, que está ao meu lado?

Esse o tal “mundo” sobre o qual queria falar e agora me parece que os anos que se passaram sem que esse intento tivesse sido alcançado não se devem aos erros, mas sim ao tempo, que não me trazia pronto, como as horas do lusco-fusco, da indecisão delicada, que não são aptas a revelar, simplesmente porque não são. Sou um barqueiro inexperiente que se perde no começo do caminho desconhecido, seduzido por paradas fortuitas recheadas de pequenos enganos e prazeres.

O mais estranho de tudo é que hoje, ao sentar decidido a escrever, um tanto cansado desse espelho que tem sido a minha escrita, buscava um tema que me fosse estranho e, se possível, engraçado, até porque queria agradável o meu texto, para quem o pudesse ler. Como não poderia deixar de ser, devaneei profundamente do meu propósito inicial até o resultado desta crônica que se mostrou viva, assim como o meu próprio caminho, cuja prescrição eu teimo em assumir, sabendo que não são forças opostas, mas conciliadoras, sinceramente alerta para encontrar na escuridão os sinais que algum farol avisado poderá emitir em minha direção, de forma que possa lançar ao mar âncoras temporárias se quiser descansar um pouco, ou meta força total nas máquinas, mas com alguma expectativa de que sigo na rota certa.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Crônicoterapia

O passado anda me fiscalizando, a julgar por pessoas remotas, e outras nem tanto assim, que nos últimos tempos aparecem do nada. Semana passada abri minha caixa de correio e me deparei com um e.mail de alguém que não vejo a, no mínimo, 25 anos e que encontrou meu endereço eletrônico por acaso, mas não explicou como, nem onde. Minha antiga conhecida, que começou esclarecendo nem mesmo ter certeza de que eu era eu mesmo, mas sou, queria dar notícias suas e receber algumas minhas.

Claro que não o contato em si, que foi muito legal, e muito menos a pessoa, extremamente gentil, aliás, mas a ação de espreitar o passado que esse encontro virtual desencadeou me causou um certo desconforto, como acontece às vezes, e eu ando, desde então, a lutar com as lembranças, idéias, sensações e palavras para saber o motivo desse leve enjôo, dessa inquietação interior causada pelas sombras empalidecidas pelos anos, razão pela qual elegi dita ação como tema desta crônica, ou seja, para que não vença desta vez o mal hábito que, confesso, tenho de deixar passar ao largo os incômodos da vida, pequenos ou grandes, quando as suas causas não são de fácil constatação e, principalmente, tratamento.

Arrisco, de largada, os motivos que, no fundo, me são velhos conhecidos. A pessoa de que falo, não por ela, já disse e repito, mas em razão do que trouxe de mim mesmo no passado, simbolicamente, é claro, pelo simples fato de ser uma figura desse passado, me apresentou em retorno a ausência de mim na minha própria vida, pois me fez lembrar de escolhas conscientes que não fiz, de encruzilhadas que não parei, de caminhos que tomei sem decifrar o que dizia minha alma, do quanto segui como rês a trilha da boiada, em meio à poeira da estrada, dando encontrões o tempo inteiro comigo mesmo e com quem caminhava (e talvez ainda caminhe) ao meu lado. De certo como até hoje ainda persista em mim, em menor grau, eu acho, esse mal hábito de postergar as dores inevitáveis, o olhar sobre especificamente esse passado não me diverte e até me enjoa.

O que deveria trazer de volta 25 anos decorridos não os trouxe, pois eles nunca saíram de fato daqui.

Só posso mesmo me incomodar com esses 25 anos que não passaram, que teimam em ficar na minha frente fazendo caretas esquisitas, buzinando em meus ouvidos suas dúvidas oportunas, me dizendo que mesmo após todo esse tempo eu ainda não compreendo, me chamando para conferir se ainda tomo os rumos incertos ditados pelo medo e pela culpa.

Aquilo que está depositado nos escaninhos da memória há 25 anos não deveria ainda falar tão claramente e espetar o presente de forma tão vigorosa, fazendo doer o corpo e a alma que sobressaltam apavorados, mas o fazem enquanto não ocuparem seu lugar de lembranças e seus personagens continuarem a ser alimentados diariamente e compondo quadros articulados daquilo que foi inadvertidamente; do que não deveria ter sido.

Os dias passam rápidos demais e tenho a nítida impressão de que nunca aprendi o que fazer com o tempo. Nunca pensei nele, e até hoje não penso. Como não dou bola ao tempo, ele faz de tudo para que eu o note, se ri de mim e brinca comigo de esconder. A maior parte das vezes eu não o vejo. Minha amiga do passado me fez dar de cara com ele e constatar, diante de algumas escolhas turvadas pela nebulosidade da minha consciência, que desta roubava a presença e o senso crítico, que somente a liberdade traz sentido à vida e dar conta de si mesmo, no sentido figurado da expressão, apesar de ser tarefa trabalhosa e nem sempre leve, é uma meta a ser construída e alcançada.

Aos poucos e à duras penas venho dissipando as brumas e acordando desse sonho não sonhado. Olhares como esse que me permitiu minha amiga do passado me faz buscar consciência de cada passo futuro da minha jornada, certo que é melhor estar totalmente presente na elaboração do roteiro dessa viagem e viajar acordado, o mais possível. De resto, vou tentando escolher as danças que a vida me convida a dançar, se não negando as que não me são tão agradáveis, ou tendo coragem de declarar as que me são preferidas, e só dançar essas, ao menos me divertindo o quanto posso.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Vigiai

Todos os dias podem ser literalmente iguais. Se você, como eu, suporta uma rotina profissional diária enfadonha, monótona e nada estimulante a atividades criativas, tome cuidado pois, mesmo diante desse quadro de poucas alternativas para sentir-se vivo, preste atenção a cada um dos minutos do seu dia, especialmente aqueles que você pode estar com outras pessoas. O encontro com pessoas, ainda que sejam as mesmas diariamente, pode ser uma (ou a única) oportunidade para tornar sua vida esteticamente artística, um pouco mais colorida, mesmo que você seja, digamos, um contador, um analista fiscal ou financeiro, um revisor de anúncios classificados ou de algum diário oficial, um encarregado de departamento pessoal, uma telefonista de serviços de proteção a crédito, um advogado – como esse que vos escreve - (que enjôo...), sem a intenção de desfazer de nenhuma ocupação, ou de ninguém, mas, admitamos, tais ofícios não se pode chamar de divertidos, de per si.

Vez por outra nessas horas de encontros previsíveis o acaso transforma a flácida banalidade em iluminada grandiosidade interna, se você estiver atento e não tiver (muitas) reservas mentais, ou seja, se “viajar na maionese”, mega-popularmente falando, não for uma atividade absolutamente fora do raio das suas possibilidades de ação humana. Em outras palavras, se os filtros do seu olhar, caro leitor, não forem excessivamente restritivos e lhe impuserem como única fonte de atenção os fatos, atos, idéias, memórias, ações, conceitos, imagens passíveis de serem consideradas, de plano e certamente, aproveitáveis como ferramenta para chegar a um resultado “prático” indiscutível, como acumular bens ou dinheiro ou aprender coisas para obter vantagens pessoais, apenas para citar duas hipóteses.

Aconteceu comigo em um dia da semana passada. Como todos, fui almoçar à exata mesma hora, com as mesmas pessoas, no mesmo lugar, quando normalmente os assuntos variam das mais básicas amenidades, como a previsão do tempo para a região, até discussões profissionais continuadas da primeira parte do expediente diário, quando, depois de um diálogo corriqueiro sobre casamento, alguém declarou sua admiração a um casal de amigos que ostentavam religiões diferentes e, num pulo, algumas pessoas já falavam sobre suas próprias convicções, e de seus companheiros, e contavam suas estórias nesse âmbito. Eu também estava fazendo isso, mais precisamente quase chegando ao ponto em que procurava as palavras para declarar minha satisfação, no sentido de estar satisfeito, em relação à uma cosmovisão científico-espiritual, digamos, quando alguém se antecipou e disse que era assim mesmo, todos buscavam “respostas”.

Nesse momento, leitor paciente, contrariei minha interlocutora dizendo, assim meio sem pensar, que nunca procurara respostas e nem mesmo eu havia me dado conta desse fato, antes de a ela ter dito. Em seguida, novamente e ainda sem saber o motivo, reiterei que não nunca havia me preocupado, como até hoje não o fazia, com obter respostas. Tais afirmações que ouvi de mim mesmo ficaram, a partir daquele instante, estranhamente ecoando por repetição à minha volta e eu, não conceitualmente, mas de forma imaginativa, por lembranças que tenho de mim mesmo ao lançar meu pensamento ao passado, por rápido resgate consciente dos momentos em que alinho os âmbitos e as forças minha alma a conteúdos espirituais, vasculhando nas gavetas da memória as minhas posturas frente à vida e o mundo em geral, confirmava que jamais abri um livro, assisti uma aula, participei de um ritual ou conversei com alguém em busca de respostas. O que me motivou, e me motiva, me impulsiona a seguir no rumo do conhecimento, do mundo e de mim mesmo, jamais foi a intenção de obter respostas à perguntas previamente formuladas.

Quero dizer a você que, ao longo daquele dia em que fui retirando aos poucos de minhas vistas internas os filtros que podem travar a capacidade de atuação de minhas habilidades anímicas, e nos dias que se seguiram também, especialmente ao encarar a estranheza de não buscar respostas, o que parece ser relativamente comum entre as pessoas, e isso não significa que não tenha perguntas, por que elas vivem em mim desde sempre, e apesar delas portanto, reconheci que meu estímulo ao conhecimento não foi obter respostas, mas sim encontrar identidade. A cada intenção de reconstruir minha presença em momentos de encontro com conteúdos sobre o homem e seu destino, mesmo antes de ela se completar, já recuperava a sensação de ter sido acolhido por aqueles conteúdos, ou não, como se houvesse, e de fato estou convicto de que há, um movimento vivo de recepção ou repulsão, como se um caloroso abraço envolvesse aquele que estuda e o próprio objeto do estudo, quando ambos se acolhem mutuamente, pela ação do reencontro daquilo e daqueles que de antemão se conhecem.

O que eu sempre almejei, e nem sabia disso, confesso, foi a identidade, o que me leva a saber que, ao final, quando esse encontro se faz e é de troca, ou seja, quando os conteúdo me falam e são escutados por minha alma e esta também fala com eles, e através deles, e é escutada, o que sempre procurei foi tornar-me único com tais verdades. Eu não soube responder, amigo leitor, à minha interlocutora naquela banal conversa, mas agora eu sei e digo a você como se fosse a ela, que somente a mim mesmo eu busquei, e ainda busco, nessa jornada de saber, de conhecer o mundo.

Eu disse que havia retirados os filtros.... então, arrisco mais, arrisco dizer que meu encontro com os conteúdos que me enchem, e somente com relação a esses, que passam pela minha alma e nela permanecem impressos, me fazem deles fazer parte, neles viver e eles da mesma forma também vivem em mim e são o que eu sou, em ação promíscua de fusão.

Sei que me transformo, querido leitor, a cada encontro com os conteúdos que alimentam minha alma e eles também se transformam quando eu os devolvo ao mundo, perpassados reciprocamente, alma e conteúdo, e, assim, penso que damos vida um ao outro, nascendo o tempo inteiro, e mais uma vez.

Acaso ou não, leitor mais-que-paciente, a noite de sábado coroou esse meu despertar, quando uma amiga que estudou um livro chamado “De Jesus a Cristo” declarou seu interesse em continuar conhecendo o assunto, estudando outros livros sobre o tema, apesar da “viagem” que ele é. Eu que já conheço tal conteúdo, e também o considerei na época uma visão arrojada e atrevida do assunto e, ao mesmo tempo, inteligente, lógica e quase óbvia, se lida livre de preconceitos, continuei entusiasmado a estudar pois me identificava com ele, pois eu já o conhecia, já o havia encontrado. Era tão somente um ver de novo.

Aquele que gastou seu tempo com esta leitura, se chegou até o ponto presente, quero agradecer e me desculpar pela longevidade desta crônica, mas esteja certo que minha entrega foi total. Não escondi nada, não direcionei nada, não quis que nada parecesse com o que não é. Então, quem leu me conhece um pouco mais, verdadeiramente.

Se você aceita, aqui vai uma sugestão: mantenha os olhos bem abertos, os ouvidos atentos, o tato, o paladar e o olfato curiosos, todos os seus sentidos despertos em vigília. A vida distraída pode nos roubar as oportunidades de conhecer a quem deveria ser o nosso maior propósito de conhecimento. Nem preciso dizer quem é.