quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Bolachões e Mãos Francesas

A tarde do último domingo me encontrou em raro momento de solidão em minha casa, um tanto sem saber o que fazer, muito provavelmente pelo inusitado da situação. Diante da súbita disponibilidade de tempo para explorar todo o meu próprio universo (poderia ver fotos, organizar livros ou gavetas, jogar papéis fora) imediatamente decidi usar aquelas horas desenterrando de suas covas rasas os meus velhos vinis, os famosos “bolachões”, para uma sessão individual de miscelânea musical, como sempre que posso faço. Escolhidos alguns álbuns, sentei-me na cadeira diante da janela e me entreguei às canções do passado, que resolvi privilegiar pois que nunca as posso escutar sem que os filhos protestem veementemente, além da própria companheira, cujos gostos musicais nem sempre são, ou estão, alinhados aos meus.

Observava o que vive do outro lado da janela do quarto ocupado pelas minhas crianças com as pernas esticadas até a cama de uma delas, quando ascendeu-se em minha mente uma fraca luzinha sobre o meu próprio quarto adolescente e que tornou-se somente meu após o primeiro casamento de meu único irmão, cravado em um apartamento que se ergueu no meio da metrópole do meu coração, Sampa.

Eu ainda sou o mesmo e as capas quase desfeitas dos meus “bolachões”, algumas até autografadas, como a do Fred Bongusto que dedicou o disco ao “Iva”, provam isso. Muda a vida do outro lado da janela, de outras janelas de edifícios vizinhos para árvores e pássaros, mas eu não mudo. Surgem linhas no rosto que observa a moça da capa do Fortíssimo herdado de algum primo mais velho (loira de calças justas até as canelas, blusa colorida e chinelo), mas não muda o olhar que ainda quereria estar na edição do ano do festival de San Remo. Mudam porque envelhecem as gôndolas venezianas da foto que guarda a Canzone Per Te mas não mudam as expectativas aleatórias de que encontros desconhecidos e não planejados naquela mesma noite mudarão a vida.

Depois que meu irmão se casou tive de meu pai a permissão para adaptar a meu gosto e necessidades o quarto para onde hoje retorno em sonho e assim o fiz para instalar prateleiras pelas paredes, todas de madeira clara fixas com mãos francesas pretas, e comprar uma escrivaninha daquelas altas cheia de gavetinhas que guardaram missais e terços da primeira comunhão, vidrinhos vazios de perfume, fotos e revistas, em gavetas cuidadosamente separadas, assim como na escrivaninha de minha alma jovem, além de outras tantas aparentes inutilidades e lembranças.

Nas prateleiras fixas com mãos francesas depositei meus livros, papéis importantes, cadernos e apostilas da escola, dezenas de músicas cifradas que lá permaneceram por longo tempo sem serem aprendidas e toda a minha intenção de criar um mundo só meu e que jamais se completou pois algumas prateleiras ainda permanecem vazias a espera das confissões escritas que não tive coragem nem forças para tornar feitas, de uma vez por todas.

Gavetas e prateleiras do meu quarto de adolescente dividiram o que fui e sou, assim como os dias ainda hoje o fazem, mas vozes que ouço na vitrola repletas de ruídos do tempo já me vêm lembrar do necessário resgate e unificação de todos aqueles que em min se tornam um inteiro. Do que fui, fragmentado, para o que sou, quase colados os pedaços, aprendi a abrir bem os olhos em direção desses compartimentos que me guardam em partes e não sinto mais dor, mas apenas ternura por aquele que ainda encontro um tanto apartado de si mesmo.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Da justiça e sua morada

Certo dia em minha casa em Ribeirão Preto, lá pelos idos de 2000, mais ou menos, uma amiga violoncelista me perguntou, depois de uma consulta jurídica formulada em uma manhã de domingo sobre problemas que enfrentava à época com sua doméstica, afinal, onde está a justiça? Convivo com essa questão em minhas entranhas há exatos 25 anos, quando jurei solenemente buscá-la a despeito de tudo, inclusive da lei e dos homens que julgam, e faço muitíssimo menos do que gostaria, pois que essa atitude livre e consciente seria o alimento para manter saudável minha conturbada relação com minha profissão, e por isso já tão debilitada.
Especificamente hoje a mesma questão me assola: Onde está a Justiça?, lembrando-me que a indignação de quem me perguntava naquele momento era originária do fato de que a então patroa havia pontuado sua relação com a empregada pela disposição em responder às necessidades desta, ainda que a despeito da lei, uma vez que direitos não julgados necessários não eram observados, ou seja, minha interlocutora queria saber afinal onde encontramos a justiça, se havia feito tudo o que ambas julgavam seria o necessário para que a relação de trabalho fosse equilibrada, equânime.
Naquela manhã de domingo, mesmo que sem saber tudo o que essa resposta poderia conter (e passados 9 anos ainda estou descobrindo), respondi a ela que a justiça só poderia ser encontrada dentro de cada um de nós e que, por isso, justiça e lei precisam ser encarados como ambitos diferentes, e esta cabe dentro daquela, mas a recíproca não é necessariamente verdadeira. Assim, declarar a verdade somente baseado em um conjunto de ferramentas voltadas à tentativa de organização social , seja a própria letra da lei, seja o dizer sobre ela, não garante que o fenônemo da justiça ocorra enquanto qualidade inerente ao homem, e tão somente a este, em seu ambito interno, uma vez que, mesmo diante da consciência de que não é justo em razão do que quer que seja, caso a lei o proteja, é somente do homem a decisão de executar, ou não, seus direitos, em detrimento da justiça, em alguns casos. E cada um de nós tem a medida exata da justiça de seus próprios atos, sem que ninguém precise ensinar.
Guardadas as devidas diferenças e proporções, acordei com essa mesma pergunta, diante de uma sanção disciplinar aplicada ao meu filho pela escola onde estuda, diante do fato de ele ser, reconhecidamente por todos e admtido pelo próprio, a origem e a liderança de um processo desestabilizador da dinâmica de aulas que participa, em outras palavras, a velha situação já vivida por muitos pais: o seu filho puxa a corrente e os demais vão atrás. Na tentativa de usar os procedimentos disciplinares disponíveis, somente essa liderança foi punida pela instituição, sem que houvesse uma avaliação profunda, até onde eu sei, do contexto geral que envolveu a ilicitude do ato (bagunça) e sem a reflexão sobre se aquela única deliberação punitiva seria suficiente para que a justiça fosse feita.
Pois bem, também não tenho a resposta, mas sinto transitando pelas regiões da minha cabeça, peito e estômago, e principalmente deste último, uma leve dúvida sobre se a decisão foi realmente justa, ou se eu tenho a totalidade das informações sobre o assunto, ou seja, se a sanção aplicada de fato devolve ao mundo a segurança de que foi dado a César o que é de César, imagem que tão bem ilustra o que é a justiça, essa abstração tão procurada pelo homem desde que encontrou outro homem, ou seja, sempre, de forma que a cada qual seja atribuída a obrigação de responder pelo o que quer que tenha dado causa.
Se um puxa e outros seguem há uma plularidade de ações que envolvem o resultado ocorrido, ainda que de naturezas e intensidades diferentes. Se o resultado, por sua vez, foi danoso, há que avaliar a conduta de cada um dos que participaram, quem puxou e quem foi atrás e, me parece, não há outra alternativa senão haver, da mesma maneira, uma pluralidade de sanções, diversas entre si, é claro, mesmo que a letra da lei, nesse caso os regulamentos escolares, em quaisquer de suas formas, assim não preveja. Se essa não for a deliberação do julgamento certamente a justiça perdeu-se pelo caminho e só há uma pessoa, ou pessoas, legítimamente aptas a encontrá-la: aquelas que não foram punidas pois que as falhas da lei, ou dos homens que as julgaram, as protegeram. Elas guardam a morada da justiça e preferencialmente podem libertá-la, arrancando-a do mesmo lugar onde eu disse ela estaria à minha amiga: no interior de cada uma delas.
De fato tenho dúvidas se minha análise pode ser considerada realmente isenta, mas tenho por princípio que assim seja e sou treinado para isso. Na nossa caminhada diária damo-nos pouco conta de o quanto as nossas pequenas escolhas podem ser reconhecidas como o ressoar humano desses seres arquetípicos intangíveis como a moral, a ética, a justiça e, no mais das vezes, tenho a impressão de que usamos pouco dos nossos recursos diversos, pensamentais inclusive, mas especialmente o do entregar-se para que venham a nós as inspirações e intuições que trarão a luz desses seres que se abrigam em nós mesmos. O resto é coragem.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

De todas as dores-de-cotovelo

..Tu me mandaste embora eu irei, mas comigo também levarei o orgulho de não mais voltar.. Desde ontem venho cantarolando esse samba-canção que deve ter sido gravado antes mesmo de eu nascer, como se alguém me tivesse mandado embora e eu prometesse, para castigar a ingrata que ..este trapo, tu não mais verás... A música faz isso comigo: vivo todas as vidas que quero viver, me transformo e invento de olhos fechados situações coloridas repletas de dores-de-cotovelo “bolerísticas” e “sambacancionísticas” também.

É fato que, dentre outros, também gosto de “música de cabaret”, embora essa classificação de gênero musical possa ser mal interpretada, mas é provocativa e gosto dela por isso, expressão que homenageia um grande amigo que anotava – cabaret - nos canhotos dos talões de cheques as noturnas despesas tidas com líquidos etílicos, propositalmente, caso sua mulher resolvesse bisbilhotar e que eu considero por isso mestre em mentir, contando a verdade, já que é tão absurdo o sujeito ir a uma boite, admitir e deixar os rastros para a própria patroa que só pode ser mentira.

Como filho de meu pai que sou, desde que nasci, e tendo sido ele um crooner de orquestra, quando moço, fotógrafo de artistas e freqüentador da boemia paulistana, como não poderia deixar de ser, esse era o universo musical da minha infância. Além disso minha mãe e tias cantavam nos coros da matriz de São José do Belém (de São Paulo, capital, e não do Pará) e nas festinhas da colônia italiana onde se podia ouvir, além dos sucessos da era do rádio, conta ainda hoje minha tia Odete, a Adelaide Chiozzo tocar sua divertida sanfona.

Por isso, ainda no jardim da infância – ai se a Tia Marini soubesse (se fala Mariní com acento agudo no último i)- conheci o cais de Barcelona e sua beira, de tanto assistir a pobre Dolores Sierra vinda da roça esperar um tal Dom Pedrito, filho-da-mãe, que prometeu buscá-la e não cumpriu. Lá mesmo a Lola ficou o resto da vida, sorrindo para quem ganhasse em algum jogo imaginário a primeira peseta da noite. Ficava eu pensando se na Espanha não havia ônibus que ela pudesse tomar com as pesetas que ganhava dos caras do porto e voltar para casa (na época eu não sabia como a Dolores fazia para ganhar a grana dos marinheiros já que sorrir nunca havia, até onde sabia, dado um cruzeiro a ninguém).

Daquele tempo me vem a saudade da boneca de trapo, desde sempre perdida no mundo a rolar (era, digamos, uma gorda com sex appeal), chamada de farrapo de gente, que pecava por prazer e foi meu primeiro vício, antes mesmo do cigarro (desculpe o palavrão), o único aliás, pois foi com ela que eu também amanheci na rua, first time, aos 8 ou 9 anos, talvez antes, ela que gostava da lua, era fã das estrelas e vadia (dito pelo próprio dono da voz que despertou admiração do Frank Sinatra, o “Nelsão”, como dizia meu pai, seu grande admirador). A minha boneca era .. da cor do azeviche, da jaboticaba.., ou seja, preta, como aquelas que o Grande Otelo usava como partner de dança quando declarava que era preto e avisava que ninguém contestasse seu gosto pois havia muito branco com pinta na testa.

Eu olhava a boneca de piche, que não era de piche mas de pano mesmo, e me lembrava da de trapo, e simpatizava por demais com as duas: a primeira era meu amor divertido e dançava comigo molinha, molinha. A segunda me fazia parecer uma personagem desconhecida da minha infância, o filho de uma família italiana prometido a uma de minhas tias, com quem namorava desde criança, e que se apaixonou por uma taxi girl e com ela teve um filho. Do final da estória eu não sei muito bem, além de que o casamento não aconteceu um tanto pela fúria de meu avô, pois era assunto escondido, tratado como segredo a ser esquecido e não comentado.

Não tinha 12 anos e já era íntimo da desilusão amorosa e deve ser essa a razão de não haver uma só festa de São João em que não me lembre do amor que em uma delas teve seu começo e depois se acabou, morrendo sem foguete, sem retrato e sem bilhete, como dito em Último Desejo, música que alguns anos depois ainda se tornou mais especial pois era a preferida dos pais de um meu amigo e vizinho e que foram realmente donos da minha estima.

Quando eu canto ..ninguém é de ninguém, na vida tudo passa.. todo mundo ri e eu mesmo acho engraçado, excessivamente melodramático ao declarar que o ..mundo é mesmo assim... Mas continuo gostando e cantando essas canções que ouvia na vitrola portátil verde e branca aos domingos pela manhã, na sala de tacos de madeira cuidadosamente encerados de nossa casa da Vila Teixeira, carregando no sentimento de dor pelo abandono, pelo destino cruel de amar sem ser amado, exagerando na vibração das cordas vocais ao perguntar que queres tu de mim?

Os ventos musicais que sopraram no Brazil depois dos anos 40 do último século, embora adoráveis, tornaram cafona a cantoria sentimental de gente como Altemar Dutra, Dolores Duran, Nora Ney, Agostinho dos Santos, só para citar alguns nomes, e decretaram que bacana mesmo são manhãs na praia de Copacabana, que deviam ser mesmo belíssimas naquele tempo, barquinhos que vão e tardinhas que caem, muitíssimo bem sacado e que eu adoro, e não mais a boemia noturna que levou Dalva de Oliveira ao erro admitido escrito por Ataulfo Alves e à vingança que o Lupcínio Rodrigues entregou à Linda Batista cantar e ninguém mais deu conta de fazer melhor.

De minha parte, que posso tudo e gosto de música brasileira, velha, nova, velhíssima ou novíssima, me vingo dentro do barquinho navegando nas águas de Copacabana no final de uma tarde, nas companhias de Dolores espanhola e da boneca de trapo, cantando alto ou pianinho, do jeito que me der na telha.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Dos títulos das Coisas

Para mim é bastante difícil imaginar títulos para crônicas, assim como também para qualquer escrito, da mesma forma que, mesmo talvez mal comparando, é bastante delicado sintetizar acontecimentos em apenas uma frase, pois esses podem nos atropelar e deixar-nos mancos sabe-se lá quanto tempo, levar a termo situações com apenas uma expressão, considerando-se que dependendo das circunstâncias podemos entrar nelas uns e sair outros, reduzir um sentimento a uma palavra, já que sentimentos podem nos levar ao céu ou ao inferno, em alguns segundos. Títulos são coisas importantes para quem aparou a coisa titulada. Têm a tarefa de representar, de dizer algo fundamental, direta ou indiretamente, e imaginá-los é um risco pois é preciso ficar nu quase em pêlo, deixar-se vestido somente com o essencial.

Nessa hora de escolher títulos, por tudo o que disse, dá-me uma ansiedade de encontrar a melhor solução e surge internamente uma inquietação por enxergar na minha frente tantas possibilidades, tantas maneiras de dizer uma mesma coisa, tantos pontos periféricos em torno de um às vezes único núcleo.

Ao imaginar um assunto para esta fala, e nesse ponto do processo há alguma similaridade com o momento da titulação, pois ambas reduzem, concentram, na medida em que é preciso tornar objetiva uma idéia que sirva de “ponto de partida” para o pensamento, mas que ao mesmo tempo seja inteira, o qual, ao depois, se desenvolve com sua própria vida, imediatamente lembrei-me do título deste blog que, a bem da verdade, é uma oração completa (sujeito, verbo e predicado) com a qual convivo de há muito, muito mesmo.

Encontrar títulos ou conceber uma idéia inicial talvez seja como viver: abandonar as poucas importâncias e dedicar-se àquilo que realmente traz sentido à vida é por muitas vezes incumbência que passamos décadas para realizar, e muitos de nós não realizamos, empenhando forças para não enroscar nas dúvidas e incertezas de nós mesmos, ou para desenroscarmo-nos delas, então fracos para estabelecer as vitais vinculações entre as possibilidades, o que estas representam para nós e os recursos e potenciais que trazemos internamente.

“Eu queria dizer o que eu penso sobre o mundo” foi a resposta que eu mesmo dei a uma pergunta feita por um grande amigo que não vejo a algum tempo, e repetidas em algumas manhãs de segundas-feiras ribeirãopretanas quando nos encontrávamos para estudar um pouco e falar de nós mesmos, buscando apoio mútuo para as necessárias transformações pessoais que estavam por vir, entre um violãozinho aqui, um cafezinho ali e dois cigarrinhos certos, ao ser inquirido sobre a questão que realmente vivia em mim nos idos da juventude.

Transformando a afirmação inicial em pergunta, que mesmo após tantos anos ainda caminha junto de mim, escondida ao meu lado na maior parte do tempo, esperando calada compartilhar minhas escolhas e experiências, tentando sem sucesso, admito, passar à minha frente para abrir caminhos, postando-se atrás de mim esperando respaldar o que precisa ser, chego ao título deste blog: O que eu penso sobre o mundo, como eu o vejo, de que forma posso apresentá-lo com meu olhar?

Embora não tenha sido difícil responder à pergunta naquela segunda-feira, e essa clareza de visão me assusta, pois não tem sido fértil, nunca consegui saber o que fazer com ela, como se não tivesse força suficiente para alavancar minha vontade, e de fato não teve. Despido de filtros ou limitantes considerações prévias, respondi calma e objetivamente à pergunta do meu amigo fumante como eu (não sei se ainda o é) e mais alguns tantos anos se passaram, sem que eu a tivesse feito concreta.

De que servem estas crônicas nas quais eu falo mais sobre mim mesmo do que sobre o mundo, afinal, se é ele o objeto do meu encanto, ou não seria desde o início e tudo não passou de um ledo engano?

Preciso supor, para não me reconhecer à deriva mais uma vez, torcendo para que seja um relance de intuição, que ao falar de mim, não é apenas de mim mesmo que falo, mas do ser único que somos e fomos, desde o princípio, pois o faço carregado pelos braços da fraternidade, disposto a dividir o que é somente meu no princípio, mas que depois de dito deixa de me pertencer e torna-se, enfim, comunitário, embalado pela suavidade da esperança de apenas repetir o que não nasce necessariamente em mim, mas também, e em cada um de nós, e em todos, de formas, jeitos e clareza diferentes, e talvez eu apenas tenha uma voz para dizer, ávido para que eu possa funcionar como algum eco daquilo que nasce fora e eu empresto o que tenho, e o que não tenho, em mim para que viva, em nome do outro, por nossa conta. Tenho receio de ser presunção, mas é assim que sinto e faço. Falo desse corpo irmanado composto por cada um de nós, e por todos nós.

Então, o mundo sobre o qual eu queria (e quero) falar é o “nós”; sou eu e é o outro, que está ao meu lado?

Esse o tal “mundo” sobre o qual queria falar e agora me parece que os anos que se passaram sem que esse intento tivesse sido alcançado não se devem aos erros, mas sim ao tempo, que não me trazia pronto, como as horas do lusco-fusco, da indecisão delicada, que não são aptas a revelar, simplesmente porque não são. Sou um barqueiro inexperiente que se perde no começo do caminho desconhecido, seduzido por paradas fortuitas recheadas de pequenos enganos e prazeres.

O mais estranho de tudo é que hoje, ao sentar decidido a escrever, um tanto cansado desse espelho que tem sido a minha escrita, buscava um tema que me fosse estranho e, se possível, engraçado, até porque queria agradável o meu texto, para quem o pudesse ler. Como não poderia deixar de ser, devaneei profundamente do meu propósito inicial até o resultado desta crônica que se mostrou viva, assim como o meu próprio caminho, cuja prescrição eu teimo em assumir, sabendo que não são forças opostas, mas conciliadoras, sinceramente alerta para encontrar na escuridão os sinais que algum farol avisado poderá emitir em minha direção, de forma que possa lançar ao mar âncoras temporárias se quiser descansar um pouco, ou meta força total nas máquinas, mas com alguma expectativa de que sigo na rota certa.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Crônicoterapia

O passado anda me fiscalizando, a julgar por pessoas remotas, e outras nem tanto assim, que nos últimos tempos aparecem do nada. Semana passada abri minha caixa de correio e me deparei com um e.mail de alguém que não vejo a, no mínimo, 25 anos e que encontrou meu endereço eletrônico por acaso, mas não explicou como, nem onde. Minha antiga conhecida, que começou esclarecendo nem mesmo ter certeza de que eu era eu mesmo, mas sou, queria dar notícias suas e receber algumas minhas.

Claro que não o contato em si, que foi muito legal, e muito menos a pessoa, extremamente gentil, aliás, mas a ação de espreitar o passado que esse encontro virtual desencadeou me causou um certo desconforto, como acontece às vezes, e eu ando, desde então, a lutar com as lembranças, idéias, sensações e palavras para saber o motivo desse leve enjôo, dessa inquietação interior causada pelas sombras empalidecidas pelos anos, razão pela qual elegi dita ação como tema desta crônica, ou seja, para que não vença desta vez o mal hábito que, confesso, tenho de deixar passar ao largo os incômodos da vida, pequenos ou grandes, quando as suas causas não são de fácil constatação e, principalmente, tratamento.

Arrisco, de largada, os motivos que, no fundo, me são velhos conhecidos. A pessoa de que falo, não por ela, já disse e repito, mas em razão do que trouxe de mim mesmo no passado, simbolicamente, é claro, pelo simples fato de ser uma figura desse passado, me apresentou em retorno a ausência de mim na minha própria vida, pois me fez lembrar de escolhas conscientes que não fiz, de encruzilhadas que não parei, de caminhos que tomei sem decifrar o que dizia minha alma, do quanto segui como rês a trilha da boiada, em meio à poeira da estrada, dando encontrões o tempo inteiro comigo mesmo e com quem caminhava (e talvez ainda caminhe) ao meu lado. De certo como até hoje ainda persista em mim, em menor grau, eu acho, esse mal hábito de postergar as dores inevitáveis, o olhar sobre especificamente esse passado não me diverte e até me enjoa.

O que deveria trazer de volta 25 anos decorridos não os trouxe, pois eles nunca saíram de fato daqui.

Só posso mesmo me incomodar com esses 25 anos que não passaram, que teimam em ficar na minha frente fazendo caretas esquisitas, buzinando em meus ouvidos suas dúvidas oportunas, me dizendo que mesmo após todo esse tempo eu ainda não compreendo, me chamando para conferir se ainda tomo os rumos incertos ditados pelo medo e pela culpa.

Aquilo que está depositado nos escaninhos da memória há 25 anos não deveria ainda falar tão claramente e espetar o presente de forma tão vigorosa, fazendo doer o corpo e a alma que sobressaltam apavorados, mas o fazem enquanto não ocuparem seu lugar de lembranças e seus personagens continuarem a ser alimentados diariamente e compondo quadros articulados daquilo que foi inadvertidamente; do que não deveria ter sido.

Os dias passam rápidos demais e tenho a nítida impressão de que nunca aprendi o que fazer com o tempo. Nunca pensei nele, e até hoje não penso. Como não dou bola ao tempo, ele faz de tudo para que eu o note, se ri de mim e brinca comigo de esconder. A maior parte das vezes eu não o vejo. Minha amiga do passado me fez dar de cara com ele e constatar, diante de algumas escolhas turvadas pela nebulosidade da minha consciência, que desta roubava a presença e o senso crítico, que somente a liberdade traz sentido à vida e dar conta de si mesmo, no sentido figurado da expressão, apesar de ser tarefa trabalhosa e nem sempre leve, é uma meta a ser construída e alcançada.

Aos poucos e à duras penas venho dissipando as brumas e acordando desse sonho não sonhado. Olhares como esse que me permitiu minha amiga do passado me faz buscar consciência de cada passo futuro da minha jornada, certo que é melhor estar totalmente presente na elaboração do roteiro dessa viagem e viajar acordado, o mais possível. De resto, vou tentando escolher as danças que a vida me convida a dançar, se não negando as que não me são tão agradáveis, ou tendo coragem de declarar as que me são preferidas, e só dançar essas, ao menos me divertindo o quanto posso.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Vigiai

Todos os dias podem ser literalmente iguais. Se você, como eu, suporta uma rotina profissional diária enfadonha, monótona e nada estimulante a atividades criativas, tome cuidado pois, mesmo diante desse quadro de poucas alternativas para sentir-se vivo, preste atenção a cada um dos minutos do seu dia, especialmente aqueles que você pode estar com outras pessoas. O encontro com pessoas, ainda que sejam as mesmas diariamente, pode ser uma (ou a única) oportunidade para tornar sua vida esteticamente artística, um pouco mais colorida, mesmo que você seja, digamos, um contador, um analista fiscal ou financeiro, um revisor de anúncios classificados ou de algum diário oficial, um encarregado de departamento pessoal, uma telefonista de serviços de proteção a crédito, um advogado – como esse que vos escreve - (que enjôo...), sem a intenção de desfazer de nenhuma ocupação, ou de ninguém, mas, admitamos, tais ofícios não se pode chamar de divertidos, de per si.

Vez por outra nessas horas de encontros previsíveis o acaso transforma a flácida banalidade em iluminada grandiosidade interna, se você estiver atento e não tiver (muitas) reservas mentais, ou seja, se “viajar na maionese”, mega-popularmente falando, não for uma atividade absolutamente fora do raio das suas possibilidades de ação humana. Em outras palavras, se os filtros do seu olhar, caro leitor, não forem excessivamente restritivos e lhe impuserem como única fonte de atenção os fatos, atos, idéias, memórias, ações, conceitos, imagens passíveis de serem consideradas, de plano e certamente, aproveitáveis como ferramenta para chegar a um resultado “prático” indiscutível, como acumular bens ou dinheiro ou aprender coisas para obter vantagens pessoais, apenas para citar duas hipóteses.

Aconteceu comigo em um dia da semana passada. Como todos, fui almoçar à exata mesma hora, com as mesmas pessoas, no mesmo lugar, quando normalmente os assuntos variam das mais básicas amenidades, como a previsão do tempo para a região, até discussões profissionais continuadas da primeira parte do expediente diário, quando, depois de um diálogo corriqueiro sobre casamento, alguém declarou sua admiração a um casal de amigos que ostentavam religiões diferentes e, num pulo, algumas pessoas já falavam sobre suas próprias convicções, e de seus companheiros, e contavam suas estórias nesse âmbito. Eu também estava fazendo isso, mais precisamente quase chegando ao ponto em que procurava as palavras para declarar minha satisfação, no sentido de estar satisfeito, em relação à uma cosmovisão científico-espiritual, digamos, quando alguém se antecipou e disse que era assim mesmo, todos buscavam “respostas”.

Nesse momento, leitor paciente, contrariei minha interlocutora dizendo, assim meio sem pensar, que nunca procurara respostas e nem mesmo eu havia me dado conta desse fato, antes de a ela ter dito. Em seguida, novamente e ainda sem saber o motivo, reiterei que não nunca havia me preocupado, como até hoje não o fazia, com obter respostas. Tais afirmações que ouvi de mim mesmo ficaram, a partir daquele instante, estranhamente ecoando por repetição à minha volta e eu, não conceitualmente, mas de forma imaginativa, por lembranças que tenho de mim mesmo ao lançar meu pensamento ao passado, por rápido resgate consciente dos momentos em que alinho os âmbitos e as forças minha alma a conteúdos espirituais, vasculhando nas gavetas da memória as minhas posturas frente à vida e o mundo em geral, confirmava que jamais abri um livro, assisti uma aula, participei de um ritual ou conversei com alguém em busca de respostas. O que me motivou, e me motiva, me impulsiona a seguir no rumo do conhecimento, do mundo e de mim mesmo, jamais foi a intenção de obter respostas à perguntas previamente formuladas.

Quero dizer a você que, ao longo daquele dia em que fui retirando aos poucos de minhas vistas internas os filtros que podem travar a capacidade de atuação de minhas habilidades anímicas, e nos dias que se seguiram também, especialmente ao encarar a estranheza de não buscar respostas, o que parece ser relativamente comum entre as pessoas, e isso não significa que não tenha perguntas, por que elas vivem em mim desde sempre, e apesar delas portanto, reconheci que meu estímulo ao conhecimento não foi obter respostas, mas sim encontrar identidade. A cada intenção de reconstruir minha presença em momentos de encontro com conteúdos sobre o homem e seu destino, mesmo antes de ela se completar, já recuperava a sensação de ter sido acolhido por aqueles conteúdos, ou não, como se houvesse, e de fato estou convicto de que há, um movimento vivo de recepção ou repulsão, como se um caloroso abraço envolvesse aquele que estuda e o próprio objeto do estudo, quando ambos se acolhem mutuamente, pela ação do reencontro daquilo e daqueles que de antemão se conhecem.

O que eu sempre almejei, e nem sabia disso, confesso, foi a identidade, o que me leva a saber que, ao final, quando esse encontro se faz e é de troca, ou seja, quando os conteúdo me falam e são escutados por minha alma e esta também fala com eles, e através deles, e é escutada, o que sempre procurei foi tornar-me único com tais verdades. Eu não soube responder, amigo leitor, à minha interlocutora naquela banal conversa, mas agora eu sei e digo a você como se fosse a ela, que somente a mim mesmo eu busquei, e ainda busco, nessa jornada de saber, de conhecer o mundo.

Eu disse que havia retirados os filtros.... então, arrisco mais, arrisco dizer que meu encontro com os conteúdos que me enchem, e somente com relação a esses, que passam pela minha alma e nela permanecem impressos, me fazem deles fazer parte, neles viver e eles da mesma forma também vivem em mim e são o que eu sou, em ação promíscua de fusão.

Sei que me transformo, querido leitor, a cada encontro com os conteúdos que alimentam minha alma e eles também se transformam quando eu os devolvo ao mundo, perpassados reciprocamente, alma e conteúdo, e, assim, penso que damos vida um ao outro, nascendo o tempo inteiro, e mais uma vez.

Acaso ou não, leitor mais-que-paciente, a noite de sábado coroou esse meu despertar, quando uma amiga que estudou um livro chamado “De Jesus a Cristo” declarou seu interesse em continuar conhecendo o assunto, estudando outros livros sobre o tema, apesar da “viagem” que ele é. Eu que já conheço tal conteúdo, e também o considerei na época uma visão arrojada e atrevida do assunto e, ao mesmo tempo, inteligente, lógica e quase óbvia, se lida livre de preconceitos, continuei entusiasmado a estudar pois me identificava com ele, pois eu já o conhecia, já o havia encontrado. Era tão somente um ver de novo.

Aquele que gastou seu tempo com esta leitura, se chegou até o ponto presente, quero agradecer e me desculpar pela longevidade desta crônica, mas esteja certo que minha entrega foi total. Não escondi nada, não direcionei nada, não quis que nada parecesse com o que não é. Então, quem leu me conhece um pouco mais, verdadeiramente.

Se você aceita, aqui vai uma sugestão: mantenha os olhos bem abertos, os ouvidos atentos, o tato, o paladar e o olfato curiosos, todos os seus sentidos despertos em vigília. A vida distraída pode nos roubar as oportunidades de conhecer a quem deveria ser o nosso maior propósito de conhecimento. Nem preciso dizer quem é.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Festa Catsumbula

Hoje é sexta, dia de saudade, de vontade de pegar a estrada e rever os meus, eu que vivo distante os dias da semana, a trabalhar nessa barranca de rio, do Rio Grande, no limite paulista e mineiro, lá no quase extremo noroeste do mapa, sempre aflito para voltar para casa.

Levantei-me com a sensação de que os filhos meus ainda são pequenos e que me perguntarão, quando eu chegar neste final de semana e me preparar para ir a algum lugar: - Pai, aonde você vai? E eu responderei, como sempre, tal qual faria minha mãe, como de fato fez quando eu mesmo era criança, várias vezes: - Na festa catsumbula!

Fico imaginando se minhas crianças, quando eram crianças, ao ouvir esse nome inventado, ou trazido pelos meus avós da Itália, não sei bem, porque todos os meus primos também ouviam a mesma resposta, também achariam, como eu achava, o quão divertida deveria ser a festa. Nada que é catsumbula pode ser monótono, lento, arrastado. Há de ser alegre, com convite a muitas brincadeiras, sem comportamentos sociais rígidos, uma festa com esse título. Hão de ser de todos os tipos e cores as roupas dos convivas, e eles próprios também, cada qual com suas características, confraternizando as diferenças.

Era assim que eu imaginava a tal festa, quando menino: uma festa do tipo natal na casa de meus avós, onde não se cantavam cânticos, nem liam-se os textos evangélicos indicados pelo lecionário católico, apesar da tradição. Nos encontrávamos a todos, a grande família italiana que, além dos filhos e netos, noras e genros de várias origens, espanhóis, iugoslavos, portugueses, ainda era composta pelos muitos amigos dos meus avós, alguns italianos, outros húngaros e dois negros tidos em altíssima estima pelo meu avô, um deles de nome Seu Maíde (o outro não me lembro o nome), suas famílias e os inúmeros afilhados que chegavam e saíam ao longo do dia 24, ao menos de 2 ainda me recordo eram filhos de amigos convalescentes dos tempos em que minha avó estivera longos meses interna em um hospital para tratamento pulmonar, em São José dos Campos, quando a mesa nunca ficava nua, e os pães, os vinhos, os assados, as conservas, o queijo provolone, o brodo e o finuccio eram partilhados com quem chegasse.

Nessas ocasiões, a diversão estava garantida quando quaisquer dos meus primos mais velhos, inclusive meu irmão, até meus avós levava um namorado ou namorada a apresentar pois já sabíamos, de antemão que, se para ele fosse a primeira apresentação teria o candidato de sorver, obrigatoriamente, uma taça de vinho tinto, a qualquer custo, estivesse ou não habituado, e não foram poucos os que, burlando a fiscalização severa do nono, embebedaram os vasos de plantas da sala da minha avó e, se para ela fosse a direção da apresentação, era sempre divertido observar o semblante de quem não sabe o que responder quando minha avó perguntava, antes mesmo do nome da candidata, como se essa fosse a principal habilidade para o pretenso processo de ingresso na família: - Você sabe fazer molho de macarrão?

Esta a casa dos meus avós, que eram verdadeiramente catsumbulos!

Não entendia muito bem o motivo pelo qual crianças não eram jamais levadas à festa catsumbula à vista do meio sorriso de meus pais quando respondiam que lá iriam, ou de lá tinham voltado, pois me parecia ser a comemoração essencialmente infantil, pelas expressões leves e também divertidas que traziam.

Os olhinhos negros de meus dois filhos também me fitavam interrogativos, quando ouviam a resposta à famosa pergunta: - Pai, aonde você vai?

Não me recordo exatamente quando, mas sei que ainda pequeno eu já sabia que, quando a festa era catsumbula, significava que a nenhum lugar iriam meus pais, ou em nenhum teriam estado, e creiam, isso sempre foi para mim um desconsolo, uma vez que jamais se deveria perder uma festa catsumbula, onde quer que estivesse acontecendo.

Atualmente, adulto, não preciso mais da companhia de meus pais e não perco uma festa catsumbula, em qualquer circunstância. Será que hoje haverá uma?

Um livrinho de Pelúcia

Os carros sempre quebram às segundas-feiras. Poderiam quebrar terças, quartas ou quintas, mas quebram, invariavelmente aos sábados, domingos, feriados e, no máximo, segundas. O meu, ou melhor, o automóvel da Usina que eu uso, me deixou na mão na manhã da última segunda quando saía de casa, já atrasado, como habitual, e contava nos dedos as 4 horas e meia que levo até o meu trabalho, antecipadamente nervoso pelo que poderia esperar de um dia curto e lotado de coisas a fazer.

Diante daquele quadro desanimador, manhã de segunda, carro quebrado e chuva torrencial em Botucatu, especialmente na Estância Demétria, bairro rural onde os dias chuvosos são próprios (quer queira-se ou não) para amassar barro com os pés, despachei-me para a oficina mecânica, onde encontrei um assento reservado aqueles que não se separam de sua paixão e de lá não arredam pé até que seu carrinho esteja saudável novamente, o que definitivamente não é o meu caso. Na verdade não me agrada em nenhum nível, e até me irrita, acompanhar os acertos e desacertos dos mecânicos, no seu interminável processo empírico para descobrir o defeito do veículo, baseado no rudimentar sistema do erro e acerto, que eles jamais admitem. Apenas não tinha o que fazer e ainda esperava, quando o relógio apontava 10:00 h, poder seguir viagem naquele mesmo dia.

Olhei no banco de trás do meu carro e vi um livro, despretenciosamente depositado. “Fica Comigo Esta Noite” é o título do livro e também de um samba-canção do Nelson Gonçalves (“....fica comigo esta noite/ e não te arrependerás /lá fora o frio é um açoite/ calor aqui tu terás...”), que não consigo deixar de cantarolar cada vez que lembro o nome da obra, como agora. Tomei emprestado da Aventura, nome divertido da biblioteca da Ana, também divertida, na tarde do sábado (eu acho) anterior em que lá estivemos e, além do livro, por empréstimo, ainda filamos um maravilhoso cafezinho do Ricardo, este sem devolução, mas com contrapartida certa e garantida quando os anfitriões quiserem ir à minha casa, acompanhado de queijinhos “originais” e tudo (o original, feito de leite de cabra, tem sotaque português imitado pelo Ricardo).

Depois de fingir entender as primeiras explicações apresentadas com muita propriedade pelo mecânico e que me deixaram seguro de que as horas de espera não seriam poucas, tomei o livro da Inês Pedrosa nas mãos, de quem já havia lido um “Fazes-me Falta” triste, mas belíssimo. Não me arrependi e, no decorrer do dia, cheguei a dar graças pela segunda chuvosa com carro quebrado: que outra oportunidade teria para devorar o livro assim, todo de uma vez, lido num único sopro, sem as interferências dos mundanos assuntos advocatícios, no trabalho, ou domésticos, também mundanos, em casa?. Doze contos escritos com a melodia do português mais próximo da sua forma original, agora sem sotaque.

Durante minha leitura, entre invisíveis mecânicos e clientes da oficina em frenético vai-e-vem, indignei-me com a fria e livre negativa do filho cineasta ao pedido de seu pai alcoólatra e solitário, cuja glória maior era a memória antiga da resistência à ditadura salazarista, para que com ele ficasse na varanda “por mais meia hora até que o sol acabasse de nascer”, em troca de uma engenhoca eletrônica qualquer. Imaginei a mim mesmo fazendo tal pedido, sob a noite Lisboeta que não conheço. Virei-me na cadeira, que se tornou desconfortável de repente. Já não via mais porcas, chaves de fenda ou parafusos. Não me importava se o automóvel ficaria pronto em 1, 2 ou 3 horas.

Àquelas alturas andava a vontade pelas paginas do livro.

Alguns minutos depois, quando dei por mim estava na porta da oficina, escondendo das pessoas as lágrimas que me corriam, como novamente correm agora que releio o mesmo conto, quando outro pai escarafunchava sua própria dor de saudade pelo desaparecimento da única filha adolescente nas torres gêmeas, atormentado por não ter com ela morrido, e nem tive coragem de imaginar nada. O desespero da ausência. Tenho agora a fronte dolorida.

Ri sozinho com uma fadista contando sua vida a um imaginário companheiro de mesa de café, especialmente para registrar que sua família compartilhava, a própria, o marido e a filha, uma espécie de benção humana que sobre eles desceu, encarnada em um jogador de futebol, o pai por vê-lo no esquadrão nacional, sempre a fazer defesas incríveis, as fogosas mãe e a filha por compartilharem com ele suas camas, a primeira atribuindo a esse sexo descomprometido a salvação de seu desde sempre monótono casamento. Tudo casualmente e em segredo, é claro.

Passava de 15 h quando me levantei da cadeira em frente ao escritório da oficina, olhei o motor exposto do meu carro, sem qualquer pretensão de ver ou entender alguma coisa, notei os capôs abertos, as ferramentas pelo chão, os cartazes da Fiat chamando os clientes para revisão dos seus automóveis, onde o carro era de pelúcia, assim como o ursinho deitado sobre ele...somente nós cuidamos do seu carro como você mesmo o faz... e me dei conta de que, se fosse para mim o cartaz, ao invés de um carro certamente de pelúcia seria um livro que estaria nele estampado, aquele mesmo que tinha em minhas mãos. Pus-me a andar rapidamente para alcançar um lugar qualquer para tomar um lanche, que a fome batia objetivamente. O coração meio disparado, a cabeça tonta das quase 5 h de leitura, a respiração desequilibrada pelos passeios rápidos e descontrolados entre sensações tão intensas e diferentes entre si. Andava rapidamente revendo e tentando reter as imagens já e quase transformadas das cenas dos contos que vivi naquele dia, junto a cada um dos seus personagens, um tanto sem saber onde pararia mas certo de que faria isso somente quando conseguisse vir à tona novamente, pondo fim ao mergulho profundo daquela segunda-feira chuvosa.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Quintas-feiras (ou uma imagem da infância de um menino)

Hoje é quinta-feira e as quintas-feiras me são saudosas. Como me sinto um forasteiro em qualquer lugar que já estive, desde que saí de minha cidade, há 16 anos atrás, qualquer detalhe, como um dia da semana, um nome, uma palavra dita com um sotaque familiar, me leva a lembrar do que se foi.

Estou habitualmente tentando me convencer de que não sou bairrista, mas confesso que hoje escrevo em tributo à minha São Paulo querida, tão rechaçada pela sua aparente frieza, pela impessoalidade que marca a vida na metrópole, mas que, ao contrário do que se diz precariamente, me deu, gentilmente, assim como a tantos outros, os alicerces para que se criasse em mim alguém que procura cultivar princípios como os da fraternidade humana, da generosidade, do calor, do respeito às diferenças, da admiração pelas coisas realmente simples.

Para quem ainda não sabe nasci e fui criado na Mooca, o bairro mais paulistano de São Paulo.

Minhas primeiras lembranças são da nossa casinha operária de vila, onde passava meus tempos de férias fazendo e soltando “raia” – tipo de pipa - nos meses de vento (julho e agosto), com folhas de papel de seda e vareta japonesa, brincando de peão (sela), montando e desmontando forte apache e jogando futebol de botão feitos de celulóides de relógios, que infernizávamos os relojoeiros das redondezas a nos dar, e que depois eram revestidos, na parte interna, com durex das cores dos times. A maior habilidade estava em, com uma lâmina de barbear, a popular gilette, sem estragar o celulóide, retirar vagarosamente o excesso de durex para que corresse sem problemas no campo, que era constantemente encerado com cera parquetina.

Todas as quintas-feiras a tarde descíamos até a casa dos meus avós maternos, italianos da Província de Catanzaro, na Calábria.

Eram certas nessas tardes de quinta-feira encontrarmos, minha mãe, meu irmão e eu, minha avó na venda (mercearia) que eles tinham, fazendo crochet ou “caça-palavras”, enquanto meu avô dormia sua religiosa soneca. Esperávamos a chegada das minhas tias Amélia, Almelinda e Olga, esta com seus três filhos, meus primos Ivani, Simone e Mauro para irmos à padaria dos “Carillo”, também “oriundi”, e que ficava na mesma rua. A recordação amarelada da vila dos “Carillo”, antigos vizinhos e amigos dos Paravatti, meu avós, é uma das mais marcantes de minha infância: a entrada em arco calçada de pedras, passando pelas casinhas da família até a entrada da padaria, onde os fornos, também de pedra, assavam os pães italianos, que eram colocados em caixas de madeira e separados por tipos: os redondos, pequenos e grandes, os de calabresa, torresmo. Luz pouca. Posso ver, nitidamente, o reflexo da luz natural nas pedras do chão da vila e o avermelhado dos fornos em brasa.

Comprados os pães, o retorno lento à casa de minha avó, onde, na cozinha, reinavam soberanas algumas conservas típicas da região do mediterrâneo, notadamente as de berinjela, especialmente escolhidas de tamanho pequeno e levemente assadas no azeite abundante, depois de recheadas com temperos, tomate maduro e aliche, não sem antes terem sido desidratadas por uma noite, ou inteiramente descascadas, fatiadas e cortadas em finos “palitos”, que eram longa e simplesmente marinadas em bom vinagre de vinho tinto e temperadas com azeite, alho cru, louro e pimenta calabresa.

Nessa mesma mesa a mortadela, que era docemente acompanhada de erva-doce crua, chamada de finuccio. O paulistano café quentinho, passado na hora e forte, era apreciado pelos adultos e crianças, a estas últimas nem sempre permitido. Depois, doces de vitrine, maria-mole entre duas bolachas, canudos de doce-de-leite, guarda-chuvas de chocolate, todos da venda do meu avô que fingia zangar-se com minha avó em razão dos doces tirados da vitrine, mas que pelo olhar tranqüilo e meio sorriso esboçado atrás do seu balcão não conseguia esconder a satisfação de ter à sua volta os netos brincando de encher e esvaziar as conchas de arroz tirado do saco, de descascar laranjas em uma maquininha a manivela que fazia nas frutas umas listrinhas finas e da casca uma serpentina desenrolada em caracóis. E se fazia a festa minha e de meus primos, com tão pouco.

Na volta para casa, minha avó nos acompanhava até parte do caminho, quando parávamos religiosamente em uma banca de jornais e eu, assim como meus primos, recebíamos dela, como presentes, gibis novos e usados...Pato Donald, Tio Patinhas e o cobiçado Almanaque Disney. Já era final de tarde. Hora de voltar e preparar a janta, fazer lição, brincar um pouco com os amigos e vizinhos de então, gente de várias origens, como em qualquer vila da Mooca, e que, pelo processo da mistura, ostentava todas as raças e, ao final, nenhuma: Reynaldo, Vagner, Billy, este o caçula de uma família de Iugoslavos muito querida, Dona Margarida e o Sr. Seman, etnia que, dizem, os primeiros representantes a desembarcar no Brasil foram morar em cortiços pertencentes à nossa família que, nem por isso, era mais abastada ou socialmente superior. Muitos então iugoslavos casaram-se com moças italianas da minha gente.

Hora de entrar para a casa, jantar, às vezes estudar, receber o calor dos momentos com a mãe e pai juntos e, finalmente, dormir.

E assim se acabava a quinta-feira. Um dia especial que guardo na minha memória de menino.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Será que um dia eu sossego?

Ontem fui surpreendido com uma mensagem eletrônica solicitando meu endereço para correspondências, enviada por uma amiga que de há muito não vejo, especialmente para fazer chegar a mim o seu convite de casamento, que acontecerá em setembro próximo. Fiquei feliz pela lembrança, abri o site que o casal pôs no ar para confirmação de presença, lista de presentes, etc. e lá deixei uma mensagenzinha simpática, dessas que apesar de sinceras não deixam de ser piegas, tipo desejando antecipadamente que Deus os faça felizes. Realmente desejo que sejam felizes.

Hoje telefonei para essa amiga, conforme o pedido contido em sua mensagem e, após uma rápida conversa, dois detalhes me fizeram pensar o quanto meus amigos antigos, aqueles que se juntaram a mim antes das escolhas mais ousadas que fiz (e olhem que eles nem têm ideia do que ainda está por vir), e que nem foram tão trashs assim, me devem achar completamente maluco, considerando-se que sou um sujeito formado em direito aos 22 anos, em uma escola tradicional (para não ser completamente elistista e lembrar que alterna com outra faculdade o status de a melhor do Brasil), cujo primeiro emprego foi na Bolsa de Valores de São Paulo, ou seja, um yuppie típico dos anos 80/90, que acabou advogando em uma usina de açúcar cravada num rincão distante 600 km da capital, mal remunerado e fora da zona do topo da carreira escolhida. O primeiro é ter de perguntar para onde mandar uma correspondência, o que significa que na ideia deles eu moro fora do planeta e, logo em seguida, ainda no início do interlocutório telefônico, questionar calmamante: - " Você sossegou?", em uma clara alusão ao fato de eles nunca saberem ao certo onde estou, se trabalho em São Paulo, Minas ou em Goiás ou onde moro no momento. Esse o segundo detalhe.

Antes que eu mesmo acredite, e isso não é muito difícil de acontecer, que realmente pirei, diante das tendências de vida que mostrava no passado e as probabilidades que se apresentavam até então, preciso registrar duas polaridades que se relacionam nessa dinâmica maniqueísta entre meus amigos quadradinhos, muito queridos, diga-se de passagem, e eu: nem eu fui muito ousado e eles é que sempre foram excessivamente caretas.

Fico me perguntando se um dia realmente vou sossegar. E confesso que não faço isso sem uma sensação de leve desconforto, inclusive por imaginar o quanto meu desassossego deve ser objeto de comentários de quem me quer bem mas, de fato, não me entende.

A questão, entretanto, me parece demasiado simples para justificar os movimentos que fiz rumo ao encontro das possibilidades de mudanças em relação ao que me era pasteurizadamente proposto, e não fui o único, muitos o fazem: tenho perguntas sobre onde levar minha própria vida e, por mais incrível que possa parecer, existem pessoas que não as tem, ou não as conseguem ver. Reconheço que nem sempre as perguntas que assolam minha alma são claras. Na maiorias daz vezes elas não têm formulação e aparecem sob os disfarces da incoformidade diante das injustiças, pequenas ou grandes, da indignação frente à crueldade com que são tratadas as diferenças entre os homens, do desconforto face à excessiva petrificação do processo educacional de nossas crianças, do escárnio com que são tratados pelos poderes públicos os dramas do nosso povo realmente tão sofrido, desculpando-me pelo jargão, mas é preciso usá-lo agora, do repúdio que me causam o egoísmo e egocentrismo exacerbados das pessoas em processos de construção de instituições sociais, do desespero para tentar entender, e sobretudo encontrar uma forma de viver concretamente, a relação que deve existir entre o homem e os mundos suprasensíveis, dentre tantas outras sensações pelas quais tenho passado ao longo desse meu caminho.

Realmente não posso ter sossego.

Confesso que a falta de clareza diante das minhas perguntas me tem levado a movimentos incertos, trôpegos, cambaleantes às vezes. Assim como reconheço que não me é gracioso ouvir a questão da minha amiga candidata ao casamento, a uma porque todos devem sossegar, eu acho, uma hora ou outra para que vivam em paz, ao menos, e depois porque tenho a sensação que ainda me falta a certeza dos movimentos que fiz, no sentido de que acertei (se é que um dia terei essa certeza) e, finalmente, porque ainda me importo com as críticas que se me apresentam.

Por aqui vou terminando, um tanto aliviado pois um pouco mais avancei no entendimento de mim mesmo, sobretudo porque, e somente no momento em que escrevo esta linha soube disso, ainda que nebulosas, foram as perguntas as responsáveis pelas prioridades que elegi, e delas não me arrependo, mas angustiado, ao mesmo tempo, especialmente por ainda não saber onde esse desassossego me levará. Oxalá seja a um lugar gentil.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Interneticamente Analfabeto

Eu disse que quase nada sabia sobre blogs!

Este post é só para confirmar como se "posta" alguma coisa, depois de o blog no ar.

Ventania

Ventania


Salvem as cartas, antigas missivas e modernos e.mails e, mais ainda, salvem os blogs e outras ferramentas eletrônicas, que aqui não nomeei porque não as conheço, confesso, pois nos permitem trazer do passado as psicoses em geral, básicas neuroses e refinadas esquizofrenias, bem como outras fraquezas e forças humanas, que cito pela força da generalidade que tais substantivos (ou serão adjetivos) carregam, por agora tão esquecidas ou escondidas, quando cada vez mais se desusa a linguagem, antigamente materializada pelo simples ato de escrever, para comunicar ao outro o que vai por dentro de nós mesmos.

Acabei de ler os posts do blog Das Ventanias e me senti aliviado! Eu que me julgava um ser do passado, “geração ponte”, parafraseando a minha querida Cora Coralina, ponte entre a máquina de escrever, elétrica já, onde bati (naquele tempo batia-se à máquina) as primeiras bobagens que escrevi, e copiei, admirado, os geniais Mário Quintana e Lygia Fagundes Telles, descobertos em plena adolescência e imediatamente reconhecidos como espelhos, origens, ou qualquer coisa assim, e os modernos processadores de textos acessáveis em velozes PC’s, laptops e outras máquinas atualmente indispensáveis mas que podem se tornar, dependendo da dimensão que se dá à sua capacidade de substituir eficazmente qualquer coisa originalmente elaborada por nós mesmos, perigosas.

Eu que sou um ser em permanente crise, existencial, financeira, emocional, filosófico-religiosa, filosófico-social, filosófico-qualquer outra coisa, filosófica pura e simples, familiar e profissional, e se existirem outras classificações, e certamente existem, também estou nelas, expirei finalmente, depois de um bom tanto de anos, ao perceber que outras pessoas também sentem.

Não sem medo de ser mal interpretado, quero dizer: viva a astralidade, palavra às vezes tão temida em certos mundinhos, e que assim os chamo não pejorativamente, diga-se logo, antes que eu seja rechaçado, mas sim, digamos, carinhosamente, que nos faz correr interiormente de uma sensação à outra, de diferentes cores, em questão de segundos, nos leva do perder o ar de desejo à mais completa indiferença em uma única frase, assim como uma folha é castigada, sem dores, quando é atirada de um lado a outro pelo vento! Pessoas e folhas se movimentam, aquelas no universo às vezes confuso, caótico quase sempre, brilhante quando se presta atenção, de si mesmos, estas no espaço de uma simples calçada de qualquer dos bairros da minha querida cidade, Sampa.

Agora que descobri os blogs não os deixo nunca mais! É lá, então, que moram as pessoas que não escondem sua astralidade, seus humanos complexos de sentidos, sensações e sentimentos, como no passado moravam nas cartas aos mais caros amigos, onde se confessava aquilo que nem mesmo a nós admitíamos, nos cartões postais enviados aos irmãos ou primos no meio de uma viagem incrível, apenas para dizer que se tinha saudade, nos cartões de natal destinados aquele amigo do amigo com o qual conversamos somente uma vez na mesa de um bar.

Escrever cartas, ou posts, deitando nelas o que vai em si, como ato generoso de dividir-se é hábito, infelizmente, cada vez menos recorrente na pseudo-modernidade de nossos dias, quando a maioria das instituições nos ensinam que o melhor, ou o fundamental, ou a única coisa que importa é ter sucesso, e só ter sucesso, social, profissional e financeiramente falando, ao melhor estilo Estados Unidos da América do Norte (nada contra os norte-americanos, nem contra aqueles que alcançam conforto material, ok?) e não a ser somente aquilo que escolhemos, seja antes de fechar os olhos ante a primeira luz neste mundo, ou depois disso, o que equivale a dizer que vivemos, ou poderemos viver, caso descuidemos, uma era de superficialidade epidêmica, tanto nas relações entre as pessoas, quanto, o que é mais triste, nas relações conosco mesmos, pois nem sempre esse tal sucesso depende de profundo conhecimento sobre o que vai dentro de cada um de nós, certamente ao contrário de quando nossa escolha for trilhar nosso verdadeiro e essencial caminho de vida, já que sem saber o que somos visceralmente não há como chegar a lugar algum.

Note-se que negar a própria astralidade, ou escondê-la, de si ou do mundo, é partir no rumo oposto ao do auto-conhecimento, e não importa a má aplicação ideológica que nos leve a isso, seja para corresponder a conceitos pré-estabelecidos de equilíbrio espiritual, ou emocional, seja por mergulhar de cabeça nessa proposta neoliberal de sucesso como único gol a se alcançar na vida: os malefícios serão os mesmos.

Penso que não se pode alcançar a serenidade interior sem que conheçamos o caos que nos habita. Penso que é muito mais difícil permear de calma a profusão quando nos escondemos de todos, e de nós mesmos. Para nos mostrarmos, aos outros ou a nós mesmos, é preciso antes observarmo-nos objetivamente e deixar que nossos conteúdos ressoem. Quer queiramos ou não, escancarada ou veladamente, esse ressoar será ouvido, neste ou em outros mundos, com ou sem palavras, pelos nossos gritos ou nossas estórias. Algo que fala e é ouvido constrói ou destrói. Tanto melhor se tivermos consciência disso.